quarta-feira, 21 de março de 2012

Trova

“Amor tão disparatado
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
Nem vi pela fechadura.

Mas eu sei quanto me custa
Manter esse gelo digno,
Essa indiferença gaia
E não gritar: Vem, Fulana!”
Mia senhora
Fez-se alva e serena
Chuva que vem de lá
Deitar rebentos no poema

Sempre sem hora
A suceder as tempestades
Cobre os acasos
Sob o véu das minhas vontades

E eu me disfarço
Dum trovador provençal
E faço mesuras
Ai que amor medieval

Não tenho alaúde
Nem tu és palaciana
O pouco que pude
Foi revê-la esta semana

Suja de tinta
Esboço de plenitude
Traço inerente
À tua vil magnitude

O meu vil comedimento
Até quando agüentarei?
Manter esse gelo digno

E fingir que nada sei

Confesso que meu desejo
É tua veste arrancar
Tocá-la com realejo
E ao povo depois mostrar

Confesso que o meu querer
É o teu ventre deflorar
Colher-te do solo estéril
Sem tua sanha despertar

Confesso-me teu vassalo
A transgredir as convenções
A desposá-la num papel
Basta de tantas confissões

Destarte continuarei
Fingindo não te escrever
Tua prez preservarei
Enquanto finges não me ler

Do ensejo me esvaio
Do teu beijo molhado
No teu golpe eu não caio
Estou perdido ou perdoado?


“Como deixar de invadir
Sua casa de mil fechos
E sua veste arrancando
Mostrá-la depois ao povo

Tal como é ou deve ser
Branca, intata, neutra, rara
Feita de pedra translúcida
De ausência e ruivos ornatos”

O Mito - Drummond

3 comentários:

"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)