segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

Dança

À Julieta em movimento
Tu és como nuvem que vem de longe...
demora,mas quando chega...
devasta, devassa, arrasta...
inspira, expira, pira...
arde, morde, flameja...
como chama, beija, clama...
abraça... enfim dança;
Como chuva que vem de longe,
chega mais molhada...
guerra apaziguada,
paz embevecida,
caótica, enfim dança;
Se te vem a tristeza visitar a vida
transforma em poesia que passa
_A tristeza? _A poesia?
_Não sei, só sei que passa,
como chuva que vem de longe,
a nuvem se dissipa
e se forma mais adiante,
Dança!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Gauche


Errei pelas ruas e conheci os amores mais efêmeros. Numa esquina me apaixonei perdidamente e noutra já amava a lânguida face de uma cortesã sobre a pele do papel. Compus trovas, elegias às mulheres mais impuras. Sátiras às mais nobres. Desordenei o discurso. Fiz juras de amor interno, injúrias, desfiz os planos. Fechei bordéis, abri caminhos. Roubei jardins, interpretei os barcos. Saqueei aldeias e dediquei fenômenos da natureza. Invoquei os santos, as giras. Blasfemei em bocas devotas. Devotei em bocas devassas. Fiz oferendas. Dancei com o vento, mudei o curso das águas. Senti escorrer a tinta pelas veias e confundi vida e obra, guerra e paz, hamor e umor... Escrevi meu livro por aí. Não me preservei. Vivi, amei a mim mesmo como se fosse o último.

quinta-feira, 1 de dezembro de 2011

Forasteiro

"Eu, sempre que parti, fiquei nas gares
Olhando, triste, para mim..."
Mario Quintana

E a vida assim se fez trilha sonora de filme francês: amores platônicos, casos literários, amor eterno que se desfaz perambulando pelas ruas, roubando flores, contando os trocados no bolso. Banco de rodoviária, o olhar na janela do ônibus, coração embaçado na vidraça, dentro o nome dela, dela quem? São tantas as palavras que se esvaem...

Jardins efêmeros, cortejos desfeitos, sentidos dilatados, dilatado verbo sentir... É o preço que se paga por ousar viver além do que se escreve, quando em detrimento da Teoria há um coração que pulsa, quando deixa-se o escritor para ser humano...

sábado, 12 de novembro de 2011

Circular Cidade 2


"E para que serve pensar acompanhada senão para cultivar a solidão?"
Dinamara Feldens
Mais um dia ébrio por R$ 1,12 e meio. Pode ser a Lucidez um elixir ?
Lá vai o sujeito com seu passo torto pelas ruas, cabelo desgrenhado, barba por fazer e o olhar crônico sob as coisas, como se fosse o último a saber. Acende um cigarro e o mundo sem desconfiar que está sendo pensado continua passando displicentemente ao redor.
Nem só de mazelas se desfaz a Zona Norte. Há que se fazer justiça e contar as pequenas alegrias que a enredam: o horizonte empoeirado que se empresta como papel de parede para um futebolzinho entre córregos, cachorros vira-latas e vendedores de picolé. Há que se contar os pés descalços na rua, o grito da mãe chamando, banho de cuia, cabelo asseado, culto na igreja e o pueril desejo contido noutro olhar igual ao seu. Há que se contar as cadeiras nas calçadas em frente às casas que se dão a longas conversas senis. Há que se contar o cálido beijo com que a dona de casa recebe o seu homem após um mais um dia de carrego na feira e a algazarra dos estudantes voltando sempre mais cedo da escola. E embora a intelectualidade literariamente forjada, também ali se encontra cada vez que acaba a tinta, o livro fecha, se abre a tarde e vai se horizontando aos poucos, dilatando os braços do sol para se deitar detrás das casas, dos barracos.
Há que se contar que na Zona Sul, além da esbanjada alegria, há solidão nos apartamentos, cigarros esquecidos no cinzeiro e flores mortas nos vasos murchos das salas tortas. E também aí se encontra, não obstante o indumentário que lhe falta.
E no centro disso tudo é onde se pede e dá-se esmolas, onde se joga e cata-se lixo, onde se trocam olhares complacentes por um breve instante, antes do sinal abrir.
Dá sinal, o ônibus pára, esquivando-se dos corpos que se espremem no corredor ele chega até a porta. Desce com dificuldade. A chuva bate no rosto. Mas em algum lugar ainda há um abraço amigo, bolo de cenoura quentinho e folhas de papel em branco onde se paga a passagem.
E não tente o entender através dos textos, só se faz compreensível à cumplicidade no abraço efusivo e bêbado do desconhecido na hora do gol, ao afago do seu magérrimo cachorro ao chegar em casa pela manhã, ao ombro amigo que acolhe, às coxas das meretrizes dos lupanares que inventa.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Dois

Bem desconfiava que findaria na cama esta prosa. Só não contava que ante tamanha beleza destas folhas, cessasse eu de escrever. Logo comigo, o mais sincero dos mentirosos, após introduzir meu léxico ao prefácio, perdi o fio do novelo e não soube por onde enredar. E ali fiquei, tragando um cigarro enquanto contemplava os contornos de cada uma das letras que te compõem quando despida. Tão rara beleza: angelical devassidão em arte fotografada. Fadas e bruxas que ardem todas juntas quando me inquisiciona com o olhar e acende fogueira em praça pública.
E quando me faltaram os versos, me fiz jardineiro a velar teu sono, porque quando há carinho, afeto e cuidado, acaba por transceder tudo o mais que não houve. Deste modo pude comprovar que as flores são mais belas ao desabrochar da aurora, ainda que chuvosa aurora. Palavra que se fez minha, te concedo o meu verbo gostar.

Feriado


Há dias em que a gente anda tão a flor da pele, mas tão a flor da pele, que deveria ser proibido por decreto se aventurar em linguagem escrita. Não é do meu feitio, em tais ocasiões, prostrar palavra alguma no referido leito, ainda menos me arriscar pelos jardins. Tenho hábitos noturnos. Apaixonar-se não se trata de um verbo comumente empregado pela natureza sempre evasiva de poeta. Eis um risco que não pretendo correr, colocaria abaixo toda a minha obra. Porém, levando em conta a transcendência de uma quimera literária que tende por elevação de estilo a se constituir carnalmente, me intriga saber em qual página há de fiar esta canção que nos é tão pertinente. Teríamos a ousadia de transpô-la do plano mimético para a dita cuja e tão já complicada realidade?

Ponho-me a divagar nas quantas e quantas palavras se desconfiam metaforizadas no meu texto... Fazem parte do meu jogo esses subterfúgios semânticos, senão não haveria graça alguma na interpretação. Ainda assim afirmo que se permita metaforizar somente aquela para a qual as notas ecoam como pano de fundo enquanto lê-se. Se não há de escutar semmi, então não tens o direito de sentir-se empregada como substantivo concreto. Eis mais uma linha solta na tessitura, desprenda-se do enredo, largue o meu verbo e retire-se de mãos vazias e imaginação fomentada. Sinto muito, estamos fechando, volte mais cedo amanhã. Não há mais ninguém aqui para vos servir, hoje não. Agora todo o trabalho manual deve ser empregado para que se cumpra a profecia lingüística daquela que sempre esteve permeando os meus escritos, mas à que nunca foi concedida a devida atenção. Sempre ali, de andanças pelos jardins, o olhar focado nas pequenas magias que acontecem em preto & branco & cores outras. A singeleza que eu procuro em linhas e mais linhas de prosa torpe, ela acha em uma imagem só, na brevidade mágica de um instante atemporal.

Visto que nunca te concedi coroa nenhuma, nem ramos de flores como às outras, merece agora emprego mais formal da minha escrita. Eu que sempre te despojei do altar, jogando-a na cama, prometo destarte tratá-la com o devido cuidado, ó palavra intraduzível. Decretarei feriado e, em meio às outras, sublinhar-te-ei para que te sintas objeto influente na minha transcrição. Se reclamares, te corôo com aspas, o que viria bem a calhar, dado que não se trata de expressão da criação da minha língua, muito embora não me pertenças jamais fora empregada com tanto asseio por outro vate. Aqui na minha prosa poética sinta-se dádiva, musa alheia, núcleo do sujeito, termo essencial da oração, enfim, sintaxe à vontade. Em verdade vos digo: já esperou por tempo demasiado a tradução. Então tomo uma dose de conhaque pra acabar com a maldita timidez e venho reclamar-te os meus direitos autorais.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Circular Cidade


Feriado. 02 de novembro de 2011. Pouco dinheiro no bolso. Sem teto. Muitos amigos. Nenhum parente morto. Folga de última hora. Finados. Os túmulos de Quintana, Pessoa e Drummond muito longes. Nenhuma flor “roubável”. Exclusividades de Iemanjá.

Rua. Convite de alguns amigos: praia, casa, passeio. Recusa. “Cintilante do caminho. Sai do arco uma flecha. Em seu contorno fogo. Corpo que pode explodir”.

Ará é uma cidade que trata com benevolência escritores sem dinheiro. Ao menos no que se refere ao deslocamento. Com apenas Um Real, Doze Centavos e meio é possível circular em todas as partes, do desperdício na zona sul às mazelas da zona norte. As ruas do centro são as mais tristes, por trazerem lembranças felizes. Glória ao Sistema de Transporte Integrado. Amém.

Às mentes insólitas do espectador comum pode parecer programa de índio. Mas não a um observador literário. Onde todos vêem transeuntes, ele vê personagens. Acontecimentos atendem pelo codinome “Enredo”. Fatos? Podem ser duvidados. Dúvidas? Podem ser validadas.

Embarcou na zona norte. Programa agendado. Deteve-se por um momento no terminal da zona leste. Ponderou. Deixou ir em paz o ônibus. Pensa um pouco sobre a composição. Nenhum Satã para financiar charutos e vinhos. Atravessou para a outra plataforma. Centro. Lembranças boas, ruas agora taciturnas, chorando a ausência de estudantes, spleen. Um real compra dois saquinhos de amendoim adocicado que substitui café da manhã, almoço e engana a fome por mais algumas horas. Observa os mendigos. A um deles daria todo o dinheiro que tivesse, se o tivesse. Mas não deu.

Outro embarque. Durante todo o percurso ele pensa sobre a composição. Centro de consumo, passa reto. Terminal do Distrito Industrial. Bundas, coxas, peitos. Amendoim não. Toma outro ônibus. Centro de consumo, desce. Ao menos tem banheiro, água e leitura gratuitas. Ilusão. Livraria fechada, mercado fechado, banheiro como consolo. Espelho, ele amarra o cabelo e acha-se bonito, apesar da barba mal feita, apesar dos olhos vermelhos, das olheiras, das noites sem dormir, dos dias de má alimentação e boas bebedeiras. Apesares.

Parque. Gente feliz, cachorros, bolas, bicicletas, crianças, sombra, piqueniques, algazarra. Deita num banco, repousa e pensa sobre a composição.

Percurso inverso: centro de consumo, banheiro, Terminal do Distrito Industrial, centro triste, zona norte. Pega a chave da casa de um amigo, mas não se destina para o devido local. Em vez disso: Bar, doce lar, como cronicaria certo Sabino.

Pede uma cerveja e um cigarro. Senta naquela mesa ali da calçada, melhor lugar para ouvir enredos. Ignora o futebol da TV. Arreda as cadeiras dos seus acompanhantes que durante todo o dia pensaram sobre a composição. Brindam: ele, seu Macário e seu Penseroso. Escrever na 3ª pessoa consiste a forma mais exata de se esclarecer, embora não o faça com a devida qualidade estética que o faria por prosa poética, falseando a 1ª pessoa do singular.

Paga a cerveja, agradece. Ainda sobram alguns trocados pro café. Contudo é hora de deitar palavra no papel.

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Escolha


Não era lá a mais bela dentre todas as palavras do dicionário. Não gozava dos assovios dos operários como essas proparoxítonas que desfilam de lá para cá fazendo da construção civil mero pano de fundo para subsidiar a empáfia que lhes é característica. Tampouco tinha cabimento no meu texto. Contudo havia nela uma beleza singular, desses desabrochares recônditos que só avistam os loucos e os poetas. E, ainda que monossilábica, forjava altivez no olhar e na pronúncia de modo a intimidar o mais intrépido revisor.
A vogal que a trazia até a minha pena era a mesma que a levava embora após um instante consonantal [Nota-se que os elementos da poesia eu uso para me entregar]. E, sabe-se lá porque diabos, passou a ser semanticamente importante para a minha escrita.
[...]
Roube-lhe a virgindade quando, revolvendo-se no catre, me lia escondida, e com uma das mãos entre as coxas procurava-se nas entrelinhas. E eu deixava o seu nome subliminar em cada prosa poética que tecia, a ingênua intenção de que me indagasse com o olhar ao menos, neste caso não haveria como negar. E ainda que julgue certeza ser em ti que escrevo, não vem ao caso falar: reservo para a boca tarefas mais libidinosas, enquanto através de olhares lânguidos mantemos um acordo tácito, e o riso é como um gozo, espetáculo de domínio público.
Mas, a despeito das tuas vontades contidas, teu colo de menina não é lugar para o roçar a barba deste poeta errante.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

Concessão




‘É preciso que a gente tente de todas as mentiras, é o que estou fazendo; pois, de todas as maneiras, só a poesia é verdadeira’.

É mais ou menos assim: Eu, Caio F. e Manoel de Barros, ladrão que rouba ladrão, mentirosos dos mais sinceros, aspas são levadas ao bolso e ali ficam à espera de devolução por parte d’alguma moça que se compadeça e queira fazer justiça com os próprios lábios.

Complicado escrever quando já se vive além do que se escreve. E quem me vê assim como as pedras que rolam pode até desconfiar que eu não tenho coração, que tudo se cria e do mesmo modo se termina no atrito entre a pena e o papel. Vamos deixar tais elegâncias de lado, pra sermos mais pós-modernos tudo se dá agora no ruidoso contato entre a extremidade dos membros humanos e a superfície das máquinas, destituído de qualquer romantismo ou nostalgia, cabe a fidúcia que lhes é característica. Como um arfar de bicho selvagem as mãos procuram as teclas e vão escolhendo uma a uma as letras que lhes convêm. Alternando consoantes e vogais a vida vai sendo tecida, entre gemidos, mordidas e sussurros. É assim que funciona a literatura contemporânea, há pressa escorrendo por entre os dedos, teu corpo é acariciado em prosa viva à flor da pele e sem nenhuma cerimônia. E quem haveria de imaginar que tais sutilezas seriam compostas por essas calejadas mãos, tão habituadas a descompor as palavras. Mãos tortuosas, assim como os caminhos, desconfio que seja algum mal específico do qual são acometidos os poetas, e muito embora eu não seja um, tanto me atrevo a fingir que acabo pagando na mesma moeda.

E como senhora mia enquanto lia percebeu: por trás dessas técnicas de produção de textos improdutivos, há sim um coração que pulsa, há vida além da teoria literária. Antes do poeta há um escritor, e ainda antes do escritor há um homem, antes do homem um menino, que além de escrever também beija, chora, ri, deseja e sente. Descansar do mundo nos teus braços, era tudo o que eu queria. Mas tu não me concedes mais que os teus olhos, os quais linha a linha ofegantemente vão descendo, até oponto G, e como se orgasmassem, aqui repousam.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

Promessa

Perdoe-me a cafonice desse estilo literário, essa postura de conquistador barato. Eu não valho a pena que uso. Apaixono-me todo dia por uma palavra diferente. Estas moças desconhecidas têm a singular beleza de um idioma alheio, poético por si só. Embora não as compreenda, me basta ouvir a pronúncia.
Perdoe-me as linhas que deixei em branco na tua vida. Nunca me declarei poeta, meus versos de outrora não contavam métrica e nem forma fixa, não se trata de um trabalho esteticamente perfeito. Em vez disso essa prosa que a gente leva, saliva que a gente preza, proezas que a gente louva. Eu finjo escrever pra ti, tu finges que não leu e fica tudo entre nós. Poderia usufruir da oralidade, mas tímido e careta que sou, prefiro ir roubando o teu coração do bolso aos poucos e sem o teu consentimento, com a engenhosidade de um aliciador de palavras, palavreador de mulheres.
Se for afeita aos longos romances, não tenho muito a oferecer. Meu texto é breve e direto, porém intenso. Sabe que sou um homem sem futuro, que o consumo todo agora, em prolongadas e inebriantes baforadas. Mas se quiseres abrir mão dos velhos cânones da literatura, te ofereço a minha asa pra pular do precipício e viver tudo de uma só vez. Se cansada estiver das entediantes narrativas, te prometo o coração pulsando, sangue timbrado nas folhas e tinta correndo nas veias até que a vida nos prepare. Venha fazer vida em meu bordel e sairá daqui grávida de poemas, contos e crônicas. E após nove meses de árduo trabalho editorial, lapidando estrutura, revisando ortografia, incoerência e coesão, a nossa obra será publicada como legado de um caso literário. E é deste modo arcaico que tudo se transforma em verdadeiras mentiras mal contadas, bem escritas.

quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Analogia Poética

Eis um ambigrama na horizontal! Sensível aos meus afagos literários, deitada diante de uma folha de papel em branco, monossilábica. Dúbia por natureza, sempre esperou que eu a escrevesse. Desejo concupiscente de ter a pureza por mim cunhada em prosa poética. Nua, linda e santíssima, eu rimo-a de uma à outra extremidade. Breve, mas de incontáveis adjetivações, algumas das quais, de tão pejorativas, só se fazem pronunciadas no ardor do ato. Sempre desconfiei certo maniqueísmo entre um e outro substantivo. Imaculada, colocar o meu Poema na sua boca só por declamação me concede. Então meus versos se perdem no labirinto, trocam-se as assonâncias, mudam-se as aliterações e dão-se vazão às mais variadas interpretações. Tamanha é a sua devoção que o emprego que a dei neste bordel passa despercebido aos olhares alheios. Não é expressão para ser contemplada à distância, mas escrita com fervor pela impudica pena deste poeta errante. Para boa leitora, meia palavra não basta, é preciso ver para crer na tinta espalhada pelo corpo, mais vale o verbo sentir do que ler.

Pode me chamar de escritor, se assim quiser. Fui eu quem te trouxe até aqui. Eu que falei “nem pensar”, acabei por te despir das denotações que trajava e deixei-te nesse estado conotativo da linguagem. Poesia é aquilo que te cala, enquanto eu falo, o que te molha. E este papel onde te encontras desvelada é o nosso leito. Mesmo a contragosto, eu pronunciei ca-ri-nho-sa-men-te tuas sílabas posteriores uma a uma para que compreendesse a si mesma. Agora me deve favores. Devolve, moça.

História de Fogo



“A palavra oral não dá rascunho” já dizia o Manoel de Barros. Consiste esse aforismo na mais pura simulação da verdade de que se tem notícia. Não dá rascunho porque não engravida de livros, a palavra oral é despretensiosa, irresponsável, se dedica apenas aos deleites momentâneos, depois se esvai e raramente resta alguma prova cabal do ato consumado, quando muito uma marca de batom se o orador em questão for um tanto quanto descuidado.
Por sua vez, a palavra escrita... ah, essa costuma prostrar o leitor no papel e abusá-lo em todas as posições sintáticas que o termo é capaz de exercer. Não satisfeita, exige ser alçada aos confins do vento e, por declamação, eis meu poema na tua boca outra vez, latejando de sentido. E um ou dois enunciados não bastam, é hora de deitar novamente, pois a pena em riste não cessa de escrever, lançando em teu ventre o sêmen do gosto pelas artes verbais. Incontáveis são os artifícios literários urdidos para que se cumpra religiosamente a estética da conjunção carnal. E deste modo caminha a humanidade: entre um e outro coito os homens se vão e o que fica, para além deles, são as palavras. É preciso reproduzi-las. Assim é a palavra escrita, ou finge ser. E o mesmo Manoel já dizia: “O verbo tem que pegar delírio”.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Telegrama

À Tâmara mulher de todos os santos.


Aquela que primeiro me permitiu introduzir o texto em prosa. Minto, não foste a pioneira, mas a que mais me deste prazer no referido gênero. Abriu as páginas para mim e abrigou meus versos, furtando as intersecções entre eles e tornando o meu texto corrido, não me dava fôlego. Mostrou-me que era possível escrever d’outras formas sem, no entanto, abdicar da poesia. Não, não me esqueci de quem sempre me leu com olhos vorazes. É que a vida anda uma epopéia, um misto de tragédias gregas, cantigas trovadorescas e contos beckovskianos. Tentei de todo modo descansar nas crônicas do Braga, aquele velho plagiador que me antecedeu em 60 anos e publicou algumas colunas da minha vida num jornal, com mais qualidade estética do que este humilde escriba que vos fala. As coisas mais simples e valiosas ele publicou, aquelas andanças no centro da cidade olhando as coisas invisíveis, o movimento dos pombos, a singular beleza das moças que vêm e vão dentro dos ônibus que passam enquanto eu fico aqui dentro do lado de fora rememorando frutas e cores da infância. O Braga me roubou tudo isso. E nem posso reclamar, eu que tanto já surrupiei o Arnaldo, o Manoel, o Mario, o Chico, o Carlos... o Braga tem cem anos de perdão. Nada me resta senão continuar tecendo essa prosa marginal e procrastinar um tanto mais a minha liberdade.

Por vezes me encho de tudo isso, esse repetido timbre de escrita, sempre em prosa, sempre luxuriosa, sempre metalinguística. Mas é disso que pago o meu aluguel. Caso ainda não te contaram, eu ando sem teto agora, de paragem aqui e acolá, levando as letras na mochila e pagando estadia com poesia. Juro que eu queria abandonar mais este personagem, do mesmo modo que larguei mão daqueles, e ir-me aventurar em outros gêneros. É árdua essa profissão de cafetão, quem dera eu fosse poeta. E ainda que assim me chamem, com P maiúsculo, ao pé d’ouvido e em voz gemida, finjo acreditar só pra satisfazer quem lê por mais um tempo. Mas tenho consciência que nada sou além de um mal pago cafetão de palavras. E elas me cobram. Não me dão descanso, me dão tudo, menos descanso. Estão sempre à espreita, na rua, no bar, no quarto, no mar, na sala de aula, no ponto de ônibus, estão sempre ali mexendo no cabelo, fingindo não me notar, tomando sorvete ou fumando cigarros, marcando presença de modo a exigir o emprego na minha escrita. E eu que nunca usei esse bordel em benefício próprio tenho que repassar todas as oferendas às concubinas.

Bem sabes o quão egoísta eu sou, que as uso como pretexto estético para satisfazer minhas vontades, mas que no fundo escrevo para mim mesmo. E se até aqui usei a tua missiva para vangloriar-me dos próprios defeitos, é porque revogo a ti, Tâmara mulher de todos os santos, a culpa disso tudo! Se agora vivo assim como num livro, folheando páginas, traduzindo moças do italiano ao húngaro, a culpa é tua. Porque assim como você, assim como tu eu não tenho mais salvação.

Ah, você me paga!

terça-feira, 6 de setembro de 2011

À pretexto,

“A palavra oral não dá rascunho” Manoel de Barros




... não se deixe levar pelo meu verso. Não leve tão a sério a minha prosa. Não me leve a mal. Se finjo ser um bom escritor, eis mais um bom motivo. Não acredite em escritores, não os leve a sério, o que eles querem é te levar para a cama, mirar na tua pele folhas alvas e te engravidar de livros.

Marques um acaso comigo e dir-te-ei, gaguejando e tímido, porém sem desviar o olhar, todas as verdades que desejas ouvir. Te falo ao pé do ouvido, suando frio e com o coração acelerado. Mas não leia a sério nenhuma palavra da minha escrita.

Deixe que eu te toque com as mãos, mas jamais admita que uma só palavra minha penetre em teu ser, pois assim estará corrompida para sempre, e quem o disse foi Neruda, um mentiroso mais sincero do que eu. Conceda apenas o afago dessas calejadas mãos de operário semântico, de modo que permanecerá intacta em sua pureza de menina doce.

Perdoa minhas orações, cesse aqui a leitura, vá para a cama sozinha e deixe fechados os livros. Não se reduza a mero pretexto para composições estéticas, pois até mesmo o mais singelo diálogo é pervertido pela minha impudica pena. Há variações hermenêuticas que a tua ciência exata é incapaz de compreender. Te contentes com os textos lineares, quase jornalísticos. Não adentre estes meios tabernários que simulo. Disseram-me certa feita: a poesia é um crime perfeito.

Declaro agora que te restituo a coroa, a janela, o vestido e a flor no cabelo.

“A palavra escrita não é para quem a ouve, busca quem a ouça; escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe”. Fernando Pessoa

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os Grãos



Não havia em ti nenhuma poesia. Não passavas de uma mulher comum entre tantas. Tudo o que te brotas foi meu olhar quem conferiu. Sob minha pena desprendi de ti os versos, a prosa doce. Fui eu quem te debruçou no parapeito da janela, colocou-te a flor nos cabelos e soprou teu vestido. Não passavas de uma mulher vulgarmente comum. Como estas coisas despojadas de amor-próprio até que o olhar do cronista lhes confere algum valor, assim eras tu. E os homens que te levam para o leito tentam em vão divisar nas nuances as assonâncias que te dei. A tua métrica foi trabalho do meu pulso, em versos decassílabos fiz abrir tuas vogais fechadas. Tu nunca foste além de tudo isso: pretexto para a minha poesia vil, platonismo deste poeta errante, amor não vivido, preterido em favor da escrita. Porque se tivéssemos consumado o que só eu idealizei, não haveria chuva, nem poema, nem giz na calçada. Tudo não passaria de realidade fria igual a esta em que se transformou a tua e a minha vida. Mas que diabos, vens tu agora e reclamas que te despojei do altar, fazendo-me largar o jornal, perder a paciência e abrir de novo as portas deste bordel, sem dinheiro pra pagar as contas. Tantas moças que me pagariam em liras e eu aqui perdendo o meu tempo, dinheiro e artesanato contigo. Tantos corpos clamando por dois quartetos e dois tercetos, formas fixas ou versos livres que sejam, e eu aqui, cigarro na boca em frente à tela do computador tecendo em prosa enquanto o meu café esfria ao alcance da mão. Deve haver alguma explicação satisfatória para este meu ofício abnegado de dedicar-te flores, trovas e fenômenos da natureza. Com sua licença, vou assistir ao movimento dos pombos na praça de eventos do mercado central. Pra que horas é o acaso?

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

ALUGA-SE





















Não pensas que é empresa fácil reordenar estas palavras. Depois de algum tempo ausente, elas se recusam a exercer as funções sintáticas que outrora designei. Não me basta a inspiração, é necessário muito trabalho, trabalho árduo, as mãos calejadas pela pena sob sol a pino, trabalho estético, como esses operários mal remunerados do campo das letras entre os quais me disfarcei. Nenhuma delas agora me obedece aqui neste bordel. Se acaso deito alguma no papel, antes de cravar meu verbo e dar forma ao enunciado, me acusam de assédio semântico. Outras alegam em suas defesas que estão dentro do período. Outras ainda deram agora para compor orações, como se isso lhes aliviasse os pecados de outrora. Dissolutas! Libertinas! Não se sujeitam de modo algum às minhas sentenças. Algumas, ouvi dizer, nem estão mais aqui, segundo informações de terceiros, arranjaram algum velho decrépito que lhes sustentasse o ócio. Vejam só, como se não bastasse ainda perco clientes. Não possuo mais dicionário para exercer a função, de modo que não estou apto a agir dentro das normas. É de se levar em conta a possibilidade de me denunciarem. Não calculei ainda o prejuízo, muito provavelmente este antro foi condenado à falência. Não me resta mais nada agora senão juntar minhas coisas e ir fazer crônicas. Aqui jaz este velho boêmio que tão fielmente vos serviu, vai saindo taciturno, cabisbaixo, escada abaixo. Vai levando o seu sotaque e este olhar crônico sob todas as coisas despojadas de amor próprio, eis tudo o que tem agora. Mas repara, antes de ganhar a rua ainda revela: vai levando consigo um singular riso de poeta no canto da boca.

segunda-feira, 7 de março de 2011

Literariam(a)nte

Lembro...

Lembro da primeira vez que veio da tua boca pra minha a palavra solta, libidinosa, dissoluta. Me disse assim: "Poeta", desse jeito igual, com "P" maiúsculo. Sabia eu não ser, fingir, literariamante... mas não te revelei ao pé-do-ouvido para que satisfizesse meus gozos por mais um tempo. E se ao crepúsculo possuo em carne, osso e saliva a mulher devida, não tarda que as de letras vêm me visitar. Alternando vogais e consoantes eu rimo qual quiser, faço orgias semânticas, rituais linguísticos que desgarram-nas do estado de dicionário em que se encontram quando despidas do tato de minhas calejadas mãos. Revogo-me as adjetivações que me atribuem, pois toda arte criadora não transpassa um auto-plágio demasiado malfadado e quando muito, vã filosofia da linguagem, como tende ser toda e qualquer filosofia...

À ti leitor despudorado, que adentra neste bordel devasso, repara ali naquele canto da taberna, há um homem de barba por fazer e de um mal humorado formalismo russo impregnado de cheiro de cigarro e vodca barata, há um operário do campo semântico mal-assalariado pela hermenêutica burguesa e disforme, em meio às palavras que se dizem putas e o consolam com afagos sobre a mesa, dançam embebidas e ele arranca delas as frases, os versos até ficarem nuas, as orações. Repara no seu olhar, há um velho que lê poemas com um gato enrolado aos pés, há um moço que precisa sentir que o mar vem oscular a areia de vez em quando para se manter vivo, mas, sobretudo há um menino que só deseja chegar em casa e ter a face lambida por seu cachorro, maior prova de amor que existe na face da terra.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Crime & Castigo.

"Histórias, assim como pessoas, borboletas, ovos de aves canoras, corações humanos e sonhos, também são coisas frágeis, feitas de nada mais forte ou duradouro do que 26 letras e um punhado de sinais de pontuação." (Neil Gaiman)

E eu, tão mal acostumado a simular histórias alternando estes algoritmos* e sinais de pontuação ao meu bel prazer, agora me desarmo outra vez, em carne nua na tua frente e não sei fingir nem ao menos poesia. E eu, outrora acostumado a simular orgasmos no papel, fazer das palavras meretrizes e receber afagos de hermenêutica, críticas risíveis e olhares suspeitos rua afora, me encontro deste modo: sem saber o que dizer nem rimar. E eu, que embasado em teoria divagava sobre a valoração acerca da estética da conjunção carnal e colocava um palavrão na boca de moças rezadeiras, acreditando ser isso o suprassumo da poesia, agora me sinto um pecador sem noção de pecado. Juro que queria dedicar-te um poema desses de umedecer o tecido durante a leitura, mas confesso que não sei deitar teu corpo sobre o papel e discorrer nas linhas, entrelinhas da tua prosa fria. Soa como algo proibido, sempre deste modo soa e não sua. Nem minha. O mais que consigo consiste em transfigurar-te em metáforas tão herméticas que se tornam reveladoras da minha natureza vil. Não mais que isso! Mas prometo sem cumprir: ainda te componho uma trova, tão despudorizada que abrirá para mim tua página ainda cálida.

*Um algoritmo é um conjunto finito de regras que fornece uma sequência de operações para resolver um problema específico.

domingo, 6 de fevereiro de 2011

Saudade II

O tempo passa...
as coisas?
Estas mudam, cegam, surdam...
a gente passa...
mas nem tudo...
eu mudo.


Porque há palavras que não permitem sinônimos.