“Ah,
deixar de escrever! Nem mereço tanto! Por
isso continuarei. Como gane eternamente para a Lua dos doidos o cão amaldiçoado
em alguma história (seguramente) infantil.”
De
repente – Paulo Mendes Campos, 19 de dezembro de 1964.
E
foi com a luz amarela da cidade incidindo sobre as coxas dela que me dei conta
da plenitude que era o meu viver atual. A chuva afagava vagamente a vidraça do
bonde, compondo o cenário letárgico ao qual as distâncias haviam me imposto.
Talvez uma trégua, sem o meu consentimento, é fato. Mas um descanso na
completude da amizade, um afago no porvir do que era amor, uma saudade há muito
anunciada e o despojar da vida com brandura, deixando sobre a mesa o copo
vazio, na parede o poema inteiro e na cadeira a certeza esvaída de já ter
vivido tudo o que se tinha para ali viver.
Ao
descermos do bonde, eu, ainda em quietude, não saberia explicar àquela mulher
que eu gozava por inteiro. Como dizer a ela que teria de me dividir entre
tantas... Como lhe jurar meu corpo se uma parte dele fora amaldiçoada pela
universalidade de um ato, ofício voluntário para com o mundo, tarefa inglória. Resoluto,
beijei-lhe ternamente a face, feito o mar que aguarda calmo as tempestades.
E
a outra, que até então sempre fora a principal, a despeito de quantas eu
deitava no catre, doravante rainha despojada de seu trono, olhava-nos a um
canto, levando no ventre o polido sêmen da vingança. Eram meus aqueles versos
trabalhados com esmero na madeira firme das horas tardias. Era minha a erudição
vocabular insubordinada à nobreza tão quanto à mesquinhez do que se moldava
falso ao gosto popular. A Literatura, senhores, é uma nobre vagabunda que não
se deita com qualquer um. E a minha escolha pela vida, senhores, configurou o
feliz abandono. A Literatura é uma séria meretriz.
Que
me restou? O intento da poesia. Sim, o intento. Pois a poesia só lá conseguem
os velhos e as crianças. A poesia é um bosque no qual só adentram aqueles que a
desconhecem por completo ou que, depois de muito tentar, dela desistiram. O poema,
este é plausível no papel. Seja o traçado firme das formas eruditas ou a mera
intenção vã e vulgar, é sempre um poema. Não mais que isso, até segunda ordem.
Pois
bem, metade do que me restou é o intento. Porém, meu intento sempre foi indócil,
voraz e maldito. Que faço eu para cantar um amor crível? Como delinear nas
estrofes de um tempo feliz a morbidez antiga dos meus versos? Fico a contemplar
na nudez de suas curvas um indício qualquer da minha redenção. E entre espasmos
e assonâncias, suor e aliteração, gemidos e declames, eu procuro o orgasmo
literário que faça jus à realidade, mas com brandura.
E tu, leitor despudorado que ainda adentra este
bordel devasso, és a outra metade. Que vens fazer aqui, maldito?! Por que
insistes nesta cumplicidade nossa? Por que não te desistes de mim? Não propago
nas mídias, não ponho anúncio no jornal nem nos postes, não te convido pelas
ruas... e mesmo assim insistes na fidelidade indômita. Soubesse eu quem eras
tu, companheiro, te dava um beijo. Ou te pagava uma dose, vai saber! Um brinde
ao teu, ao nosso célebre anonimato!
Aracaju outra vez, 16 de dezembro de 2014.