sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Tabacaria

Não sou nada
Nunca serei nada
Não mais que um verso
Sem outro declame
Que a voz suspeita dos amigos
Sem outra condecoração
Que a ameaça sublime do inimigo

Somente um verso
Sem outro refúgio
Que o terno colo das amantes
Sem outro ágio
Que a companhia nas estantes

Um mero verso
Sem outro cais
Que a prateleira de papel
Sem dizer mais
Do que verdades sob o véu

E a eterna condição de rimar
É o meu algoz
Mais cruel.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Lembrança

“Compreendendo que a função de toda gaveta é de suavizar, de aclimatar a morte dos objetos, fazendo-os passar por uma espécie de lugar piedoso, de capela empoeirada onde, sob pretexto de os manter vivos, arranjamos-lhes um tempo decente de triste agonia” _________ Roland Barthes
E foi num dia cinza, com a chuva chamando na vidraça, que me lembrei daquela gaveta. Uns discos, um livro, uma fotografia em preto e branco. Mais três cartas e uma caderneta rabiscada. Cinco elementos incapazes de contar uma estória. Mas são estas quinquilharias que tentam em vão convencer-me de que não foi um sonho... E se eu te inventei? E se, em meu afã de desmembrar-te em versos, fiz da tua pele o papel? E se desde então a saliva que te oferendam não tem outra função que o virar da página? De repente percebi que já não lembro a tua voz nem nossos planos. Sobrou-me na memória um mosaico difícil de amenidades: um telefonema, uma dedicatória, um riso no momento preciso... Nada que reconstitua a tua imagem no meu olhar. Já não és palpável ao ponto de versificá-la com engenho. Mas prometo uma prosa já murchinha na janela, enquanto me lembrar de ti. Tivesses sido apenas mulher e eu recordaria a cor lilás, o suco de mangaba e outros pormenores que compõem o cotidiano, dilatando-o. Mas tu foste palavra! Soubeste tirar de mim a eternidade.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Gauche II

“Havia achado, sempre, que morrer de amor não era outra coisa que uma licença poética.”
García Márquez in Memórias de minhas putas tristes.
 Errei pelas ruas e conheci os amores mais efêmeros. Embebido pelo espírito do vinho, declarei-me lírico nas gares. Soprei ébrio dente-de-leão na varanda e, ao contemplar a leveza da queda, perdi-me nos labirintos do nome dela. Acordei no embalo da rede e já era outro quadro que estava pendurado na parede. Inalei o aroma esfumaçado da rubiácea matutina. Ancorei meu barco na beira da morena, mas o mar me chamava noite adentro. Despedi-me e fui plantar tulipas, orquídeas e amores-perfeitos na madrugada, para colher violetas efêmeras na enseada durante o arrebol. Recebi as mais poéticas ameaças de morte e guardei-as na lapela com orgulho e desdém. Partilhei corpos na vala profunda de um soneto. Colhi tâmaras nos rochedos e, nos pomares, esmeraldas. Despetalei-me em mal-me-queres, mas o bem querer foi regresso de retalhos costurados entre estrelas. Bailarina me veio no abraço, enlaço de ondas e o riso a vogar. Sibilei com doçura uma cantiga ainda virgem. Fui ver a vida a pé e deixei entrar setembro pela janela. Vi com tristeza a mesurada trova que compus ser noticiada no jornal em linguagem denotativa. Pra viver comigo há que ser poema. Pra viver comigo tem que ter bem mais que o verbo no âmago, tem que se abeirar... dilatar-se até perder as sílabas e só então, já sem asas nem respostas, precipitar-se no desconhecido vale (a pena?). Pra viver comigo, pedi-me em casamento. Vivi, amei a mim mesmo como se fosse o último a saber...