quinta-feira, 22 de setembro de 2011

Analogia Poética

Eis um ambigrama na horizontal! Sensível aos meus afagos literários, deitada diante de uma folha de papel em branco, monossilábica. Dúbia por natureza, sempre esperou que eu a escrevesse. Desejo concupiscente de ter a pureza por mim cunhada em prosa poética. Nua, linda e santíssima, eu rimo-a de uma à outra extremidade. Breve, mas de incontáveis adjetivações, algumas das quais, de tão pejorativas, só se fazem pronunciadas no ardor do ato. Sempre desconfiei certo maniqueísmo entre um e outro substantivo. Imaculada, colocar o meu Poema na sua boca só por declamação me concede. Então meus versos se perdem no labirinto, trocam-se as assonâncias, mudam-se as aliterações e dão-se vazão às mais variadas interpretações. Tamanha é a sua devoção que o emprego que a dei neste bordel passa despercebido aos olhares alheios. Não é expressão para ser contemplada à distância, mas escrita com fervor pela impudica pena deste poeta errante. Para boa leitora, meia palavra não basta, é preciso ver para crer na tinta espalhada pelo corpo, mais vale o verbo sentir do que ler.

Pode me chamar de escritor, se assim quiser. Fui eu quem te trouxe até aqui. Eu que falei “nem pensar”, acabei por te despir das denotações que trajava e deixei-te nesse estado conotativo da linguagem. Poesia é aquilo que te cala, enquanto eu falo, o que te molha. E este papel onde te encontras desvelada é o nosso leito. Mesmo a contragosto, eu pronunciei ca-ri-nho-sa-men-te tuas sílabas posteriores uma a uma para que compreendesse a si mesma. Agora me deve favores. Devolve, moça.

História de Fogo



“A palavra oral não dá rascunho” já dizia o Manoel de Barros. Consiste esse aforismo na mais pura simulação da verdade de que se tem notícia. Não dá rascunho porque não engravida de livros, a palavra oral é despretensiosa, irresponsável, se dedica apenas aos deleites momentâneos, depois se esvai e raramente resta alguma prova cabal do ato consumado, quando muito uma marca de batom se o orador em questão for um tanto quanto descuidado.
Por sua vez, a palavra escrita... ah, essa costuma prostrar o leitor no papel e abusá-lo em todas as posições sintáticas que o termo é capaz de exercer. Não satisfeita, exige ser alçada aos confins do vento e, por declamação, eis meu poema na tua boca outra vez, latejando de sentido. E um ou dois enunciados não bastam, é hora de deitar novamente, pois a pena em riste não cessa de escrever, lançando em teu ventre o sêmen do gosto pelas artes verbais. Incontáveis são os artifícios literários urdidos para que se cumpra religiosamente a estética da conjunção carnal. E deste modo caminha a humanidade: entre um e outro coito os homens se vão e o que fica, para além deles, são as palavras. É preciso reproduzi-las. Assim é a palavra escrita, ou finge ser. E o mesmo Manoel já dizia: “O verbo tem que pegar delírio”.

terça-feira, 13 de setembro de 2011

Telegrama

À Tâmara mulher de todos os santos.


Aquela que primeiro me permitiu introduzir o texto em prosa. Minto, não foste a pioneira, mas a que mais me deste prazer no referido gênero. Abriu as páginas para mim e abrigou meus versos, furtando as intersecções entre eles e tornando o meu texto corrido, não me dava fôlego. Mostrou-me que era possível escrever d’outras formas sem, no entanto, abdicar da poesia. Não, não me esqueci de quem sempre me leu com olhos vorazes. É que a vida anda uma epopéia, um misto de tragédias gregas, cantigas trovadorescas e contos beckovskianos. Tentei de todo modo descansar nas crônicas do Braga, aquele velho plagiador que me antecedeu em 60 anos e publicou algumas colunas da minha vida num jornal, com mais qualidade estética do que este humilde escriba que vos fala. As coisas mais simples e valiosas ele publicou, aquelas andanças no centro da cidade olhando as coisas invisíveis, o movimento dos pombos, a singular beleza das moças que vêm e vão dentro dos ônibus que passam enquanto eu fico aqui dentro do lado de fora rememorando frutas e cores da infância. O Braga me roubou tudo isso. E nem posso reclamar, eu que tanto já surrupiei o Arnaldo, o Manoel, o Mario, o Chico, o Carlos... o Braga tem cem anos de perdão. Nada me resta senão continuar tecendo essa prosa marginal e procrastinar um tanto mais a minha liberdade.

Por vezes me encho de tudo isso, esse repetido timbre de escrita, sempre em prosa, sempre luxuriosa, sempre metalinguística. Mas é disso que pago o meu aluguel. Caso ainda não te contaram, eu ando sem teto agora, de paragem aqui e acolá, levando as letras na mochila e pagando estadia com poesia. Juro que eu queria abandonar mais este personagem, do mesmo modo que larguei mão daqueles, e ir-me aventurar em outros gêneros. É árdua essa profissão de cafetão, quem dera eu fosse poeta. E ainda que assim me chamem, com P maiúsculo, ao pé d’ouvido e em voz gemida, finjo acreditar só pra satisfazer quem lê por mais um tempo. Mas tenho consciência que nada sou além de um mal pago cafetão de palavras. E elas me cobram. Não me dão descanso, me dão tudo, menos descanso. Estão sempre à espreita, na rua, no bar, no quarto, no mar, na sala de aula, no ponto de ônibus, estão sempre ali mexendo no cabelo, fingindo não me notar, tomando sorvete ou fumando cigarros, marcando presença de modo a exigir o emprego na minha escrita. E eu que nunca usei esse bordel em benefício próprio tenho que repassar todas as oferendas às concubinas.

Bem sabes o quão egoísta eu sou, que as uso como pretexto estético para satisfazer minhas vontades, mas que no fundo escrevo para mim mesmo. E se até aqui usei a tua missiva para vangloriar-me dos próprios defeitos, é porque revogo a ti, Tâmara mulher de todos os santos, a culpa disso tudo! Se agora vivo assim como num livro, folheando páginas, traduzindo moças do italiano ao húngaro, a culpa é tua. Porque assim como você, assim como tu eu não tenho mais salvação.

Ah, você me paga!

terça-feira, 6 de setembro de 2011

À pretexto,

“A palavra oral não dá rascunho” Manoel de Barros




... não se deixe levar pelo meu verso. Não leve tão a sério a minha prosa. Não me leve a mal. Se finjo ser um bom escritor, eis mais um bom motivo. Não acredite em escritores, não os leve a sério, o que eles querem é te levar para a cama, mirar na tua pele folhas alvas e te engravidar de livros.

Marques um acaso comigo e dir-te-ei, gaguejando e tímido, porém sem desviar o olhar, todas as verdades que desejas ouvir. Te falo ao pé do ouvido, suando frio e com o coração acelerado. Mas não leia a sério nenhuma palavra da minha escrita.

Deixe que eu te toque com as mãos, mas jamais admita que uma só palavra minha penetre em teu ser, pois assim estará corrompida para sempre, e quem o disse foi Neruda, um mentiroso mais sincero do que eu. Conceda apenas o afago dessas calejadas mãos de operário semântico, de modo que permanecerá intacta em sua pureza de menina doce.

Perdoa minhas orações, cesse aqui a leitura, vá para a cama sozinha e deixe fechados os livros. Não se reduza a mero pretexto para composições estéticas, pois até mesmo o mais singelo diálogo é pervertido pela minha impudica pena. Há variações hermenêuticas que a tua ciência exata é incapaz de compreender. Te contentes com os textos lineares, quase jornalísticos. Não adentre estes meios tabernários que simulo. Disseram-me certa feita: a poesia é um crime perfeito.

Declaro agora que te restituo a coroa, a janela, o vestido e a flor no cabelo.

“A palavra escrita não é para quem a ouve, busca quem a ouça; escolhe quem a entenda, e não se subordina a quem a escolhe”. Fernando Pessoa