quinta-feira, 22 de setembro de 2011
Analogia Poética
Pode me chamar de escritor, se assim quiser. Fui eu quem te trouxe até aqui. Eu que falei “nem pensar”, acabei por te despir das denotações que trajava e deixei-te nesse estado conotativo da linguagem. Poesia é aquilo que te cala, enquanto eu falo, o que te molha. E este papel onde te encontras desvelada é o nosso leito. Mesmo a contragosto, eu pronunciei ca-ri-nho-sa-men-te tuas sílabas posteriores uma a uma para que compreendesse a si mesma. Agora me deve favores. Devolve, moça.
História de Fogo
Por sua vez, a palavra escrita... ah, essa costuma prostrar o leitor no papel e abusá-lo em todas as posições sintáticas que o termo é capaz de exercer. Não satisfeita, exige ser alçada aos confins do vento e, por declamação, eis meu poema na tua boca outra vez, latejando de sentido. E um ou dois enunciados não bastam, é hora de deitar novamente, pois a pena em riste não cessa de escrever, lançando em teu ventre o sêmen do gosto pelas artes verbais. Incontáveis são os artifícios literários urdidos para que se cumpra religiosamente a estética da conjunção carnal. E deste modo caminha a humanidade: entre um e outro coito os homens se vão e o que fica, para além deles, são as palavras. É preciso reproduzi-las. Assim é a palavra escrita, ou finge ser. E o mesmo Manoel já dizia: “O verbo tem que pegar delírio”.
terça-feira, 13 de setembro de 2011
Telegrama
Aquela que primeiro me permitiu introduzir o texto em prosa. Minto, não foste a pioneira, mas a que mais me deste prazer no referido gênero. Abriu as páginas para mim e abrigou meus versos, furtando as intersecções entre eles e tornando o meu texto corrido, não me dava fôlego. Mostrou-me que era possível escrever d’outras formas sem, no entanto, abdicar da poesia. Não, não me esqueci de quem sempre me leu com olhos vorazes. É que a vida anda uma epopéia, um misto de tragédias gregas, cantigas trovadorescas e contos beckovskianos. Tentei de todo modo descansar nas crônicas do Braga, aquele velho plagiador que me antecedeu em 60 anos e publicou algumas colunas da minha vida num jornal, com mais qualidade estética do que este humilde escriba que vos fala. As coisas mais simples e valiosas ele publicou, aquelas andanças no centro da cidade olhando as coisas invisíveis, o movimento dos pombos, a singular beleza das moças que vêm e vão dentro dos ônibus que passam enquanto eu fico aqui dentro do lado de fora rememorando frutas e cores da infância. O Braga me roubou tudo isso. E nem posso reclamar, eu que tanto já surrupiei o Arnaldo, o Manoel, o Mario, o Chico, o Carlos... o Braga tem cem anos de perdão. Nada me resta senão continuar tecendo essa prosa marginal e procrastinar um tanto mais a minha liberdade.
Por vezes me encho de tudo isso, esse repetido timbre de escrita, sempre em prosa, sempre luxuriosa, sempre metalinguística. Mas é disso que pago o meu aluguel. Caso ainda não te contaram, eu ando sem teto agora, de paragem aqui e acolá, levando as letras na mochila e pagando estadia com poesia. Juro que eu queria abandonar mais este personagem, do mesmo modo que larguei mão daqueles, e ir-me aventurar em outros gêneros. É árdua essa profissão de cafetão, quem dera eu fosse poeta. E ainda que assim me chamem, com P maiúsculo, ao pé d’ouvido e em voz gemida, finjo acreditar só pra satisfazer quem lê por mais um tempo. Mas tenho consciência que nada sou além de um mal pago cafetão de palavras. E elas me cobram. Não me dão descanso, me dão tudo, menos descanso. Estão sempre à espreita, na rua, no bar, no quarto, no mar, na sala de aula, no ponto de ônibus, estão sempre ali mexendo no cabelo, fingindo não me notar, tomando sorvete ou fumando cigarros, marcando presença de modo a exigir o emprego na minha escrita. E eu que nunca usei esse bordel em benefício próprio tenho que repassar todas as oferendas às concubinas.
Bem sabes o quão egoísta eu sou, que as uso como pretexto estético para satisfazer minhas vontades, mas que no fundo escrevo para mim mesmo. E se até aqui usei a tua missiva para vangloriar-me dos próprios defeitos, é porque revogo a ti, Tâmara mulher de todos os santos, a culpa disso tudo! Se agora vivo assim como num livro, folheando páginas, traduzindo moças do italiano ao húngaro, a culpa é tua. Porque assim como você, assim como tu eu não tenho mais salvação.
Ah, você me paga!