sábado, 7 de janeiro de 2023

Vespertina

        Há uma hora amena no bairro. Não sei lhe precisar qual é, pois nunca a olhei no relógio. A conheço pelo barulho e advirto: há uma hora amena no bairro. Em algum lugar da tarde, todos os dias quando se cruzam os ponteiros, eu deixo o texto e chego à janela do apartamento. Carros passam ao longe compondo inerte música de fundo, é sempre a mesma. Degrau por degrau a bengala de seu Aroldo desce as escadas, recebida pelo repetido cumprimento vago de um vizinho dos blocos do trás. Então eu já sei que o cachorro vai latir e subo meu olhar pela senda tortuosa que leva e traz as esperanças do morro, onde as crianças em algazarra jogam bola com traves de chinelo e quarto árbitro a postos no meio-fio. Pipas reclamam na vastidão do azul a falta de vento por causa dessa hora amena. Jovens descem com estampado sorriso de recente gozo e sem pressa se botam a pé no caminho da praia. Alguém encosta a bicicleta em frente à mercearia pra comprar cigarros e uma água sanitária. Sai e retorna perguntando se tem fósforo. Um gato se espreguiça em frente ao balcão. Um rádio no andar de baixo e volume mínimo se desliga, sem interferir na amenidade daquela hora. Um avião levanta o voo lento de seu monomotor pregando mais um pedaço no mosaico da tarde. O acompanho até a curva sempre pensando que não a fará para sumir no horizonte. Pouco tempo depois uma revoada silenciosa de garças encaixa a parte que faltava no sentido contrário como fosse um anúncio. Então o portão se abre e ela adentra dando boa tarde ao porteiro quando tira o capacete para ajeitar o cabelo. Me retiro da janela, verifico se tem café na garrafa térmica e volto ao texto para fazer de conta que estava trabalhando.

        Penso que não importa quantos anos se passarem nem longitudes, sempre ouvirei o ruído daquela hora amena bem no meio da tarde e pararei o que estiver fazendo para espiar à janela, preso nesse vórtice temporal.

quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Ofício II

“Que faz um autor com as pessoas vulgares, absolutamente vulgares? Como colocá-las interessantes? É impossível deixá-las sempre fora da ficção, pois as pessoas vulgares são, em todos os momentos, a chave e o ponto essencial na corrente de assuntos humanos; se as suprimimos, perdemos toda a probabilidade de verdade.”
Dostoievski, O Idiota, IV, 1.


Andei a pensar no senhor leitor. 
Primeiramente é preciso esclarecer que sou destes sujeitos ridículos que não existem mais: ando com flores na lapela, sob a luz dos lampiões, e detenho-me nas gares para tomar o último bonde que a esta hora lúrida já não passa mais. Deste modo senil vejo o mundo. E não mais publico os poemas por inteiro... 
(...)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Ofício

“Ah, deixar de escrever! Nem me­reço tanto! Por isso continuarei. Como gane eternamente para a Lua dos doidos o cão amaldiçoado em alguma história (seguramente) infantil.”
De repente – Paulo Mendes Campos, 19 de dezembro de 1964.

E foi com a luz amarela da cidade incidindo sobre as coxas dela que me dei conta da plenitude que era o meu viver atual. A chuva afagava vagamente a vidraça do bonde, compondo o cenário letárgico ao qual as distâncias haviam me imposto. Talvez uma trégua, sem o meu consentimento, é fato. Mas um descanso na completude da amizade, um afago no porvir do que era amor, uma saudade há muito anunciada e o despojar da vida com brandura, deixando sobre a mesa o copo vazio, na parede o poema inteiro e na cadeira a certeza esvaída de já ter vivido tudo o que se tinha para ali viver.
Ao descermos do bonde, eu, ainda em quietude, não saberia explicar àquela mulher que eu gozava por inteiro. Como dizer a ela que teria de me dividir entre tantas... Como lhe jurar meu corpo se uma parte dele fora amaldiçoada pela universalidade de um ato, ofício voluntário para com o mundo, tarefa inglória. Resoluto, beijei-lhe ternamente a face, feito o mar que aguarda calmo as tempestades.
E a outra, que até então sempre fora a principal, a despeito de quantas eu deitava no catre, doravante rainha despojada de seu trono, olhava-nos a um canto, levando no ventre o polido sêmen da vingança. Eram meus aqueles versos trabalhados com esmero na madeira firme das horas tardias. Era minha a erudição vocabular insubordinada à nobreza tão quanto à mesquinhez do que se moldava falso ao gosto popular. A Literatura, senhores, é uma nobre vagabunda que não se deita com qualquer um. E a minha escolha pela vida, senhores, configurou o feliz abandono. A Literatura é uma séria meretriz.
Que me restou? O intento da poesia. Sim, o intento. Pois a poesia só lá conseguem os velhos e as crianças. A poesia é um bosque no qual só adentram aqueles que a desconhecem por completo ou que, depois de muito tentar, dela desistiram. O poema, este é plausível no papel. Seja o traçado firme das formas eruditas ou a mera intenção vã e vulgar, é sempre um poema. Não mais que isso, até segunda ordem.
Pois bem, metade do que me restou é o intento. Porém, meu intento sempre foi indócil, voraz e maldito. Que faço eu para cantar um amor crível? Como delinear nas estrofes de um tempo feliz a morbidez antiga dos meus versos? Fico a contemplar na nudez de suas curvas um indício qualquer da minha redenção. E entre espasmos e assonâncias, suor e aliteração, gemidos e declames, eu procuro o orgasmo literário que faça jus à realidade, mas com brandura.
E tu, leitor despudorado que ainda adentra este bordel devasso, és a outra metade. Que vens fazer aqui, maldito?! Por que insistes nesta cumplicidade nossa? Por que não te desistes de mim? Não propago nas mídias, não ponho anúncio no jornal nem nos postes, não te convido pelas ruas... e mesmo assim insistes na fidelidade indômita. Soubesse eu quem eras tu, companheiro, te dava um beijo. Ou te pagava uma dose, vai saber! Um brinde ao teu, ao nosso célebre anonimato!


Aracaju outra vez, 16 de dezembro de 2014.

segunda-feira, 30 de junho de 2014

Lavradio

Entendo agora o arcaísmo da lavoura. Trata-se de uma sociedade patriarcal, em que os valores são arcaicos e bem delineados. Não há espaço para diálogo nas rupturas. Qualquer quebra paradigmática é feita em desordem – pois é a ordem uma semente que germina, um ramo que nasce e cresce afeito à terra que o sustenta; mas que arrancado dela toma novas formas.
Seu Antenor Pereira Beck e a lareira se confundem. O velho conversa com o fogo numa linguagem só deles. As chamas envolvem a lenha com a terna paciência de oitenta e quatro anos queimados com sabedoria.
No domingo, a segunda geração existente fora reunida. Nove ao todo. Metade se preservara na lida campeira, a outra migrara para províncias circunvizinhas, mas os valores permaneceram intactos. Na terceira geração os códigos sociais começavam a ser reescritos. Na tradicional roda de chimarrão, um dos netos – com um orgulho pioneiro que o fazia andar com a perna amostra no frio inverno gaúcho – exibia a primeira tatuagem da família.
As minhas marcas eram muito profundas, imperceptíveis a olho nu. Indícios de uma nova poesia, por mãos que provieram da terra, vogaram por mares distantes e agora, passadas duas décadas, reaveem a mesma terra outra vez.
A cidade se abrira em enleio e me fizera poeta, notívago das ruas e das mulheres do cais. O cerrado me envolvera em poeira e libertara da forma. Os pampas promoveram o reencontro com minha natureza túmida, rude, agrária. Entre as mãos camponesas de Seu Antenor no plantio de grãos e legumes e minhas ávidas mãos da colheita dos versos não havia tanta diferença: era tudo uma ciência da terra, era todo um cultivo de amor.


Boa Vista do Cadeado/RS, 8 junho 2014.

domingo, 15 de junho de 2014

Poemário


Viagem é arte de estender ausências
Sem os dizeres do velho,
[ me cabe aumentar o mundo sozinho
As retinas guardam montes, vales, redemoinhos
[ e flores de beira estrada
A palavra revela precária
[ o quadro de memórias inventadas
[ e pinta um rio no meio
Na ausência de matizes, a imaginação dilata...

O céu daqui é espichado
À noite, faz rede de estrela estendida 
(só uma tece cadência)
Tira a crase e é a noite quem faz
(sem vírgula ou vergonha)
Sem perneio, o luar cai na teia
[ e me embala no dormir
(ainda não tive lua cheia)
O céu daqui é tão vasto
[ que na aurora alonga meu ver

Tomo gole de rumo
[e gosto de voltar com o sol deitando no lombo
Minha barba já é crescida de poeira
Meu andar é meu existir
Me abeira o mato e desobriga a forma
Um vento oeste o livre verso sopra


Mimoso do Oeste/Bahia, 25 maio 2014.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

Lirismo de Amor e Outros Porres


Ao grande amigo e poeta, Juliano Beck.
Andarilho errante, alheio ao verso torto
Barqueiro à deriva, ancorado em (hai)cais
Versificando musas em cada porto
Vais trilhando a vida, suspirando ais

Se tua pena leva à cama a palavra viva
Teu coração, a nenhuma delas pertenceu
Pois tens, na poesia, a alma cativa
E na prosa, o castelo que ergueu

És portanto, personificada prosa poética
A própria metalinguística imagética
A romancear amantes em cada esquina

Lirismo embriagado em verso tinto
Tens na alma, é verdade, eu não minto
A chaga de amores impossíveis como sina!

terça-feira, 15 de abril de 2014

Tango


Azul. Era a cor do seu vestido. A olhei de tango, com meu olho ainda cinza do meu dia. Desde que passei a viver entre as tintas do ateliê que olho as mulheres de cores, cada uma tem a sua, mas não as conto. Penso na minha morte como um quadro abstrato feito do borro de cada uma delas. Mas voltemos ao cinza do meu dia. Era um cinza antigo e digno – desta dignidade que resta nas feições de quem sobrevive às tempestades –, era mais uma vez um cinza, mais uma palavra que se fora e desta vez impublicáveis eram as vivências do momento, como fosse um amor póstumo, que só se pudesse escrever após o término. Amor é modo de dizer, mau hábito. Talvez tenha sido mais que isso. Há brevidades que transcendem. Contudo, entre uma brevidade e outra o amor verdadeiro segue pendurado na parede e já me sinto fiel a este adultério.
Enfim, o dia era cinza e eu pairava na gare de mesmo tom cinzento. Foi quando notei a primeira mancha de azul. Nunca fui de olhar para estas mulheres esculturais, sempre me pareceram demasiado vazias. Mas essa mancha azul a eivar o cinza módico do meu dia era uma nota dissonante. Era uma nota de tango, perdida como quem se fizesse ouvida somente por loucos e poetas. Sei bem que já disse algo assim há três anos, trata-se de uma escolha consciente, como quem quisesse recuperar uma forma arcaica de escrever – maldita seja a primeira palavra que tirei do papel, nunca mais fui o mesmo.
Mas era dissonante aquela nota, algo fugidio entre um piano oculto e um acordeom distante, rompia o cinza matutino com distinção e mistério. Bem sabem os – cada vez mais raros – leitores que me restam que andava blues por causa de outra mulher. Certa vez, Son House afirmou que um bluesman não é aquele que domina o instrumento com maestria, e sim aquele que se apaixona; é preciso sentir o blues. Ela me fez um bluesman. Embora não dominasse instrumento algum, eu chorei o blues. Perdi cafetina, amante, a languidez da escrita. Creio ser a última a mais difícil de reconquistar. Tempos difíceis te dão o blues e é de algodão o oeste que se estende ao meu lado esquerdo – não se trata de nenhuma metáfora. Era preciso mudar o tom antes da partida.
Bem, voltemos ao tango enquanto se pode ouvi-lo. Tomamos o mesmo bonde. Não havia me visto. Andou de azul até as últimas fileiras e sentou-se ao corredor, mas, ao ver-me, imediatamente tomou o lugar na janela, deixando livre o assento ao seu lado. Que se pode fazer em dois segundos? Oscilar. E terá sido tamanha a indefinição no meu passo que todos os presentes perceberiam, se houvesse todos. E como me fizeram falta os demais, pois seriam eles o pretexto para tomar lugar ao seu lado. Não o fiz, julgando indiscrição, e sentei-me na última fileira. Então descobri que a indiscrição é preferível à covardia, pois essa nos define o arrependimento. Poderia levantar-me e sentar-se ao seu lado, mas aí a indiscrição seria tanto maior e maior era a minha covardia, talvez porque eu estivesse cinza. Mas ela ali, olhando a chuva na janela, mexendo vez por outra nos cabelos, ia me tornando aos poucos da cor do seu vestido.
O único privilégio do lugar que escolhi foi que pude a olhar de tango durante toda a viagem. Alguém mais indiscreto do que eu tomou o lugar ao seu lado. Senti um misto de ódio e pena do desgraçado que tomou meu lugar no mundo e olhava o corpo dela como se não houvesse por baixo do azul mais que alvas coxas, nádegas rosadas e seios fartos, como se não houvesse ali uma nota de tango e outra de mistério. Eis que ela – mais indiscreta e corajosa do que eu – volta o olhar para trás. Nesse momento abandonei a odiosa discrição e segurei firme o meu olhar cinza no dela, como se perscrutasse a sua alma de tango, e nisso eu já me fazia anil. Busquei na mochila um rasgo de papel qualquer que fosse e uma caneta bic, e me senti horrível ao perceber que sem estes dois elementos eu não existo. Mais uma vez me fizeram falta os outros passageiros a quem pudesse tomar emprestada a matéria em que comporia o meu destino. Se ao menos houvesse uma flor na mochila, mas quem andaria com uma? Eu, noutros tempos, andava com flores e conchas como se um dia fosse me apaixonar num bonde qualquer.
Desconheço, caro leitor, o nome daquela mulher azul. Por minha vontade ela se chamaria Maria, para rimar com o vestido – penso que eu nunca a despiria daquele vestido – e com fim de verso cantado. Desconheço, do mesmo modo, sua procedência. Nem vou contar de quando desceu do bonde, pois me envergonha o meu gris comedimento quando desprovido da pena. Tudo o que sei dizer sobre ela é que ouvi uma nota de tango naquele existir. Ainda a procuro nas gares, desta vez com caneta e papel ao alcance da mão. Coragem? Veremos. Mas devo confessar-vos: aquela mulher sem nome tornou azuis os meus dias.

sexta-feira, 21 de março de 2014

Relicário

“De que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera?”
Raduan Nassar.
Mude seu coração. Olhe ao seu redor. Cada pedaço do que invento compõe um relicário. Disponho-os pela cidade e além dela como fosse uma trilha de grãos sob a qual nos fosse possível reinventar um dia o nosso mundo perdido. Mundo esse que forjamos entre olhares no ventre do cotidiano. Aquelas horas ternas eram um descanso da realidade. Não, não existiram, ninguém as soube nem as mediu. Somente a mim e a ti foi concedido sentir a brisa daquele invento. Ah, como foram dilatados aqueles dias... e a gente equilibrava o riso entre dois mundos: a suposta realidade e o outro, o nosso. E quando começar a esquecer-te dele, somente pela minha pena existirá. Felizmente deixou-me algumas canções pelas quais me é possível a travessia. Ao tocarem você, tocam-na para mim, e vou juntando pelos sentidos os pedaços de um tempo cada vez mais difícil de reconstituir.
Era de poeira, rio e jasmim aquele nosso mundo. Era de pão doce partilhado pela manhã. Era de felicitações alheias enquanto as crianças brincavam em roda da gente ao romper da tarde em uma ruazinha não muito distante daqui. Era a irresponsabilidade pública do ósculo que me roubaste no canto da boca enquanto eu tentava em vão me ponderar no abraço. Era de músicas secretamente dedicadas, enquanto eu tecia céus etílicos descendo o vazio escuro da rua pra invocar teu nome como adjetivo declamado com fervor entre os ébrios desconhecidos na taberna. E mesmo quem conhecia intimamente os meus escritos supunha tratar-se de um louco desenhando horizontes na parede. Parece não ter acontecido aqui, há pouco tempo, parece sequer ter acontecido. Talvez eu seja mesmo um louco e viva de inventar enredos. Mas nunca antes inventara amor tão puro.
Amor? Não tão seguro disso, me arrisco a classificar como substantivo. Quanto ao verbo – e é tão somente do verbo que provém as estórias críveis – o tempo não nos foi propício para conjugar. Que importa? O tempo também foi subvertido no nosso mundo. Demarcávamos o tempo em pêndulos antigos que caminhavam num sentido próprio. E isso de horas, mal sabiam elas, passavam sem contar. Poucas horas de poeira cobrindo as nossas palavras poderiam significar anos de amizade, se assim nos quiséssemos íntimos. Alguns minutos de mãos dadas e cúmplices se escondendo nas últimas fileiras de um bonde tomado sem pensar, valiam mais que séculos, cabendo ao vendedor ambulante reger a cerimônia harmoniosa do nosso casamento sem papel nem aliança nem contrato nem tempo pra terminar, porque tudo entre nós assim fora firmado pelo selo impiedoso do momento. E o momento consiste em uma chama que consome de uma só vez quem não teme vivê-lo.
Fi-la água doce e límpida e em sua correnteza me deixei levar. Fi-la frondosa árvore e pus o coração nas suas raízes para ouvi-la com mais propriedade. Fi-la esparsa e bela nuvem e esperei que a chuva caísse arcaica sobre minha lavoura. Fi-la santa sob um altar erguido a lápis no meio da rua, embora a quisesse devassa e nua. Erigi a nossa casa no ar e pintei suas venezianas com meus olhos furta-cor para esperá-la na varanda cada dia com diversa nuance. Emoldurei na janela do ônibus o quadro verde do meu cabelo esvoaçante para vê-la sorrir. E aquele sorriso fez-me lírico mais que maldito e leitoras mais antigas reclamavam-me a libertinagem perdida em minha obra. E a frase era dita no ouvido dela com o assombro simultâneo de que pela minha mão era escrita: “Olhai de anil os postes que um pedaço de céu eu prego neles. Ainda que precária abóboda do fundo do conhaque. Olhai antes que beba-lhe o vento”. Fosse prosa e o vento teria bebido como gim. Mas fora sob verso que eu dispus aquela saudade e o vento passava entre uma e outra estrofe no vão intento de saciar a sede. Continha aquela precariedade característica dos sonetos de amor e fora colhido em alguns dias pelas mãos dela, já com as marcas que a exposição ao tempo lhe impunha sábia e inevitavelmente.
Mas ruiu aquele nosso mundo. Vejo-a de volta ao lar e a realidade parece uma coisa amena, de uma felicidade palpável entre os afazeres do cotidiano. A minha, não menos feliz, porém mais densa, é destilada entre o colo das amantes e os goles de cachaça, a denotação necessária para pagar as contas e a conotação inevitável que consome as minhas horas. Ainda ando pelas mesmas ruas, mas feito um lobo esguio na escuridão da meia-noite, tendo a lua como companheira. Atravessa-me a cidade e olho de poesia a lugubridade dos espaços quando silentes. Fico a imaginar que têm a cor da relva pubiana dela. A cidade é uma mulher despida quando todos dormem. Conversa de bêbado que ainda queria estar. Mas deixemos de dizer em terceira pessoa, pois só cabem duas naquele mundo que se dissolve. Sabes do que estou falando: compus de ti um estandarte. As coisas já não têm mais a função primeira que este mundo lhes designa. A polpa que bebes pela manhã já não diminui a sede, aumentando a saudade, porque tem um gosto nosso. Os postes apenas fingem iluminar as ruas, mas sua função primal é iluminar o olhar de quem repara, segurar os fios da imaginação. O barco enorme além do portal, imóvel como um senhor dos mares, se conserva apenas para ocultar aos olhos deste mundo o que foi vivido naquele. É como refazer o percurso do tempo, o primeiro dia quando desviávamos em vão um olhar do outro e eu, buscando não me perder, observava como você, depois de beber a água do coco, arrancava-lhe aos poucos a carne para saciar a fome e nisso eu já antevia aspectos selvagens da nossa natureza e que a nossa estória seria assim: a liquidez efêmera do frescor seguida do voraz arrancar de carnes como fazem as lembranças quando evocadas. Mas não quero que sejam de dor estas recordações, embora estejamos ainda doentes de amor. Sei que já não pode me dizer, então resta-me recolher os pequenos indícios da sua devoção. Te acalma, mulher, alguma hora todo mundo tem que aprender. Mas ainda vejo, ainda vejo o seu rosto em cada flor!

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uivo

 
Quem dera fosse a vida mero cessar de chamas. Quem dera restassem somente cinzas sobre o chão impudico do lupanar carbonizado. Quem dera resignar-me nos ternos braços d’algum amor que sê descanso, zelo, conforto. Mas a preservação não cabe a seres de minha natureza lupina, por mais gregária que deveria, arde em mim a maldição do mamífero solitário, do enjeitado, daquele que vaga mata adentro sem obter refúgio e descobre que não há abrigo mais acolhedor que estar em incessante movimento.
Tudo arde em mim mais fremente agora que tive sob a pelugem o afago de uma espécie semelhante. Bastava roçar meu focinho sanguinário nela e abrandava fome, fúria, instinto. Éramos como dois animais dóceis a rolar sob a relva ignorando a presença de caçadores. E o nosso mundo parecia a infindável vastidão das flores do prado, não havia mais que o rumorejo de um regato que tolhia o bosque e embora eu já ouvisse ao longe o canto de um rouxinol, não cogitava abandonar o resfôlego daquelas tardes calmas, afinal era-me tão raro. Presas fáceis brincavam descuidadamente sob o alcance de minhas garras e ainda que houvesse uma vontade férrea e instintiva da posse pela carne, me contentava em ser gentil, pois havia me destinado propósitos mais elevados.
Mas a noite cobriria com seu manto sacrílego e seu palor a imensidão e clareza daquelas tardes idílicas. Uma ave a qual não recordo a alcunha já prenunciava precipitadamente a escuridão e enquanto minha amada me explicava os maus agouros, me punha a pensar se não seria pela formosa mão dela que se cumpriria minha profecia, afinal sempre fora a apresentadora mordaz de meus ganidos, ainda que não soubesse disso.
Cai a lúgubre noite sobre a minha fuga e esmorecem os sonhos de menino. Queimo, corro, ardo mata adentro envolto em chamas. Não há mais relva nem prado, a floresta é tão densa quanto a minha prosa aos desencontros. Tudo é lenha e a tudo eu consumo numa agônica e debalde tentativa de sentir sozinho para que ela fique a salvo sob o frescor da brisa do riacho que dividia o bosque. Ergo sobre meu dorso em chamas todas as vigas e escombros deste amor proibido, pois ígnea é a pelugem que envolve meu sorriso e abre clareira em qualquer sombra. No fim ainda resta-me o que sempre tivera: uma noite ébria em que o meu uivo sob o luar corta o silente espaço do impossível e se reconhece no embargo repentino das suas cordas vocais.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ribeira

Dedicatória: de um riacho para outro.

E a penugem de minha tez cresceu mais ruiva do que nunca sob os auspícios dela. Cada afago matutino direcionava os fios em uma única linha corrente. Ei-los todos: o negrume da maioria que teorizava formas e o rubro lirismo sem comedimento, ao que se juntavam alguns fios louros tentando em vão uma harmonia, pois ainda havia aqueles que marcavam a passagem grisalha do tempo. Todos perfumados por cada retorno das manhãs em que eu era a festa do jasmineiro voltando com passos decididos à ficção da vida cotidiana, pois supunha ter no seio da realidade dilatado o nosso mundo.
E era todo à volta do meu sorriso que crescia o nosso amor inventado e já quase me cobria a boca. Reluzia no orvalho de cada manhã, se cobria de poeira sobre a tarde e uma brisa de saudade lhe soprava a cada anoitecer. E a espera noutro dia era sempre escondido em meio às plantas, feito uma delas que com o vento vergava o olhar para a esquina à procura de um abraço. E o coração imóvel feito planta. E a sensação da espera era tão verde quanto o caule mais frágil de esperança. Já quase murcho ia cheio de medo consultar o oráculo. Ao que ele disse: agora sim! E cada linha que eu lia era um passo dela em minha direção, e eu já com o coração em atropelo não era mais planta, não era mais verde, era menino cheio de cor outra vez com as mãos trêmulas segurando a linha tênue da própria armadilha. O paciente braço, ainda enrijecido pela espera, contrastava com a pressa do batimento interno. Mas era preciso esperar ainda um pouco, primeiro pela confusão dos sentidos ao saber que ali estive, depois pela vã procura dos seus olhos ao redor, e por último a constatação de cada pétala da minha loucura escrita no concreto tímido. Então eu chegava a meia voz (como ela sempre me chegou) já recitando em seu ouvido nu as cordas forjadas do nosso destino; e quando ela virou-se já não ouvia mais nada do que eu lhe dizia e me calava a boca com um beijo e me desequilibrava o corpo no abraço e toda a minha vida se balançava naquele riso dela. Foi a última vez que a tive.

Depois disso o silêncio deixou de ser nosso e eu, cansado de escrever, me fiz teu leitor. A força e a simplicidade daqueles versos inimigos ter-me-iam entristecido, mas devo confessar que achei-os lindos e sorri satisfeito de minha própria desgraça. Por mais destreza que eu tivesse no punho, não haveria soneto que apagasse aquilo, pois a verdade de um amor não se esquece com métrica ou rima. Ah, o riso dela... o riso dela era um álveo profundo e não era a minha a única vida que se afogava nele. Repentinamente me senti um riacho efêmero e o olhei como outro riacho efêmero diante das águas perenes daquele rio tão vasto, tão digno de toda afluência de amor do mundo. Quem de nós terá a ventura de chegar a alto mar, não sabemos, creio que serás tu. Se fores, desejo-lhe toda a limpidez da água mais pura para que saiba correr com ternura o leito desse rio que amamos. E se eu quedar por aqui mesmo, ainda na nascente, ó nobre companheiro de viagem, eu lhe faço uma promessa: farei destas margens as mais floridas, farei desta relva que banho a mais vistosa, pois até mesmo a minha dor será repleta da beleza do que foi vivido!

terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Foz

Acción Poética Tucumán - ARG

Confesso que te inventei. Não és tu a criação da madrugada, nem mesmo das últimas semanas ou meses. Levei toda a vida para te deixar assim tão bela. Foram anos e anos de árdua labuta nas lúridas horas da noite. Fui tecendo uma obra que não enxergava, me cabia imaginá-la. Dos retalhos finais de domingo, fui cosendo a rede na qual nos abraçaríamos em uma longínqua tarde empoeirada. E seria este abraço o decreto de nosso gauche destino. Fui tecendo a rede mesmo sem ter onde pendurá-la. Porque nunca fui tão afeito às paredes: de que mais servem elas senão para pendurar o amor a tarde inteira? E ainda não tenho onde pendurar o nosso, e por isso te carrego pela mão sobre as pontes, as tardes cobertas de poeira, a escuridão das ruas, a devassidão e pureza dos rios e dos risos nossos, pelos bondes e pelos barcos. Procuro um lugar onde pendurar a rede que teci para que me cubra de ternura sobre a brisa vespertina. Procuro um lugar que seja nosso.
Mas eu não a via. Havia somente um rumor da singela beleza que te comporia. Comecei então por inventar a tua voz. Foi no que primeiro me perdi. Eu era um homem rude, andava roto, carregava pesadas tralhas a semana inteira. Era na tua voz que eu descansava. Tua boca já era nesse tempo para mim um alento. O ensejo da perdição. Palavra já era, mas ainda arraigada à oralidade.
Eu não a via. Bastava-me ouvi-la. Eis que te leio. Eu não havia mais, éramos nós. Éramos nós pelas praias do mundo. Foi no que segundo me perdi. Ao ler as palavras que trouxeste à minha beira pude perceber que “algo existe em ti mais escuro que a noite, mais profundo que o tempo”. E a obra já começava a transcender o autor.
Eis que te encontro: foi a terceira vez que me perdi. Tentei ainda desviar o olhar, propus que olhássemos sempre na mesma direção, lado a lado. Mas nossos olhos eram como rios a buscarem seus afluentes, continham a impetuosidade de águas revoltas, traziam detritos de muito tempo, de muito longe. E apesar dos ventos contrários, contra rios, nada pode conter águas que se buscam. Foi então que meu olhar desaguou no teu: eis que te beijo. Foi a derradeira perdição. Ao tê-la em meus braços pude compreender o leito de toda a vida. Pude vislumbrar o curso das águas defronte. Pude antever mares até então imaginários. Imagina rios que se cruzam e seguem de mãos dadas e serenas a caminho do mar. Assim o somos.
Concedo-te a primeira prosa. Que falta ainda para eu te deitar em verso?

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Blues II



Mia Dona, perdoe-me a ausência! Não dei por mim que tinha voltado tão brevemente. Ando recluso. Laborando meu arcaísmo para voltar um dia ao poente. O porvir é como uma frágil planta arraigada a terra, em que a raiz é mais forte que a planta em si. Tenho me dividido entre a morte de uma longa prosa e os versos vindouros aos quais já me sinto condenado. Tenho vivido as mais singelas e também as mais doídas coisas da vida. Tenho amado e sofrido sem me preservar, tenho escrito poemas sem os publicar, mais que isso: tenho feito poemas sem os escrever!
Antes desta procela, mais uma palavra que se foi. Antes que murchasse, pude extrair do gineceu uma obra inaugural: um soneto, árduo, metrificado, perfeito, o melhor que se poderia talhar nestes tempos já tão idos. Um soneto jogado no lixo, como uma flor de esgoto. Coisas de poeta ultrarromântico que sempre morre de tuberculose no final da madrugada... mas no agônico suspiro consegue ainda talhar de modo rupestre um adorno à posteridade! Talvez não tenha sido mais que uma represália ao modo deselegante e nada cortês com que se tem tratado a poesia contemporânea. Talvez no mesmo ato assim eu o tenha feito: como fosse ela uma equídea xucra e lhe bastasse ajaezar o dorso para dominar-lhe os aspectos formais. Contudo, quis somente demonstrar domínio técnico para dizer que se o aspirasse, Poeta seria, mas prefiro conservar-me na anônima tecelagem desta prosa suja. Não hei de trazer primazias que careçam do verbo sentir ao nosso Bordel. Talvez eu deixe cair aqui um ou dois versos que nem sequer alcem rima, como um terno pássaro que sai pela primeira vez do ninho e se preocupa mais em descobrir o mundo circundante que voar. Talvez três versos que tenham a ingênua pretensão de haicai, mas serão eles a mentira mais verdadeira, virão do âmago, ainda pulsando e serão correspondidos plenamente.
Mia Dona, confio na prosa que leva entre as coxas para tomar conta deste prostíbulo e satisfazer os poucos clientes que ainda nos restam. Se acaso te enamorar por algum deles, tens o meu consentimento e uma placa de "aluga-se" atrás da porta, basta pendurá-la no lado de fora junto com teu coração.
Agora dê-me licença, um beijo e um último cigarro que tenho poemas a viver. Eu que outrora os escrevera nos muros, para-brisas e enseadas, agora os farei em minha própria carne à flor da alma. E se me quedar do onírico, restará chorar um blues e fumar um charuto tendo a certeza de que não tive medo de morrer e por isso vivi. Afinal, nunca este quintaneio me foi tão apropriado: “que importa restarem cinzas/ se a chama for bela e alta”.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Blues

Who wants to play with me - acryl - por Theo Reijnders

Senhor, eu tive uma mulher...
Por mil diabos, é como se o texto travasse comigo uma batalha voraz. É como se a indomável criação, malfadada e ingrata, não se submetesse mais à pena do criador. Oh maldita e inóspita palavra!
Empresto meus ouvidos ao vendedor de livros, ao vendedor de flores, e me dou conta das agruras do mundo. Vou até o boteco mais sujo, peço uma cerveja, procuro no bolso um cigarro e me dou conta de que não fumo há uns três anos e pior, pior, senhores: é tudo tão descritivo, mera denotação! Pior, senhores, é tudo tão clichê! Sim, sim, admito: estou na moda, senhor. Eu, que sempre velho e blues atravessava a pé as madrugadas desta cidade, como um boêmio lobo de estepe ou mesmo um cachorro sem dona. Eu, que sempre pedia um café e me demorava nas gares e como um dedicado cronista das inutilezas acompanhava a geometria das linhas traçadas pelo voo dos pombos da praça do mercado central. Eu, que me detive no cais a ouvir conversas e violas dos estivadores, em troca de cachaça e alguns versos etílicos que nem cheguei a publicar. Este velho operário semântico mal assalariado pela hermenêutica burguesa e disforme de palavras já tão desgastadas pelo emprego informal neste prostíbulo há muito abandonado... está na moda. A poesia está na moda. Mas ninguém cuida dela como a gente fez esses anos todos, enquanto outras coisas estavam na moda.


Praguejo a todos os cantos: cuidem de outros contos, coloquem outras coisas na moda, me deixem em paz, diabos! Pois sabem todos que em breve a abandonarão sem ter-lhe acrescido nada. Então ela virá, toda prosa no meu colo e eu terei de curar-lhe as chagas e fazê-la verso outra vez.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Telegrama VIII

Para, agora Dona, Tâmara, minha cafetina.
Ah Dona Tâmara. Enquanto os teóricos divergem sobre o que será prosa e o que é poesia, eu não sei o que faço da minha. Pois bem, são sinônimas. Não, não estou a par dos estruturalistas, nem dos outros; eles digladiam na mesa ao lado por coisas mais relevantes. Digo que são sinônimas a poesia e a vida. E a prosa consiste na maneira como a gente tenta levá-la. A gente tenta levar uma vida linearmente promissora, mas não tem jeito: sempre acaba caindo na vala profunda de uma estrofe. Há sempre um eu-lírico que põe tudo a perder. A definição que te dou não se encontra em nenhum compêndio acadêmico, mas é empiricamente comprovada pelos becos.
Sei que estás a pensar que lá vou eu reclamar-te dos meus amores literários, mas foi pra isso que te inventei. Então cala a boca e chupa. E dá-me outro conhaque.
Eu te inventei pra mim. Tu e as outras – não fazeis este semblante magoado, sabes que sempre foi a minha cafetina. Inventei-as para que compusessem meu bordel. Enfeitei-as de flores, de fitas e cetim. Concedi-lhes significações várias. Dei-lhes um trabalho indigno e em troca obtive muitos gozos e o coração partido algumas vezes. Apaixonei-me foi pela Literatura. Apaixonei-me perdidamente pela minha obra.
Mas um dia, sem rumo pela rua, deparei-me com aquela que foi a minha derradeira perdição. A princípio, sem noção do risco, quis empregá-la em meu bordel. Trouxe-a pra cá, dei-lhe um banho e comida. Ela, contrafeita, sorriu. Mal desconfiei das suas intenções perversas: transformar meu antro num lar. O restante da estória tu bem sabes...
Foste tu a minha mais duradoura invenção. Lembro com nostalgia aqueles tempos em que te sentava em meu colo e enfiava um dedo de prosa todo santo dia. Rememoro com saudade quando fazia do teu ventre o meu tinteiro. A gente ria e trabalhava.
Pois bem. A sensação é de que este bordel findou suas atividades ao público. Há um bom tempo. É como tentar vender maçãs-do-amor naquele que foi o bar mais promíscuo das redondezas. A prosa maldita cessou, só nos restaram alguns versos castos. E não sei como vou ganhar a vida. Nem a senhora.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Conto (Parte III)

Glósóli – Sigur Rós


O dia raiou e quis a moça uma fita para pôr no cabelo, da cor anil. O gatuno então perambulou pelas ruas, depois pelos prados, visitou outras aldeias, invadiu castelos e nada daquela cor encontrar. Extenuado da longa peregrinação, parou pra descansar no leito de um rio, ao que olhou pra cima. Não teve culpa, era preciso enfeitar os cachos bonitos da moça.

Após quarenta e quatro ocasos, voltou ao seu planeta trazendo aneladas aos dedos várias fitas dos mais diversos tons, exceto o anil. Na extremidade de cada uma das fitas havia um balão da cor correspondente. Dispô-los no ar para perfeito encantamento da moça. Aeróstatos lilases, esverdeados, escarlates... satisfaziam o seu alado olhar e distraíam-na enquanto o moço colocava uma fita em seu cabelo, da cor do seu pedido. Mal sabia a moça... Maravilhada com o mosaico de balões, não deu por si que o céu transparecia. Nem ao menos percebeu que o moço também não tinha cor. Como um palhaço que espalha o riso, mas tem por detrás do nariz aquele vazio existencial de que são acometidos os verdadeiros artistas.

(Fim)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Conto (Parte II)

Hoppípolla – Sigur Rós

Era tempo de pipa quando se reconheceram no olhar um do outro. Há alguns meses que o ofício abnegado do antigo jardineiro era colorir as tardes da moça. Plantava-lhe na face um breve sorriso que germinava alegria. E antes do pôr-do-sol ela lhe pôs um apelido engraçado: “entregador de arco-íris”, ao que ele sorriu também com rubor. Cativou-o. Passava as tardes a enfeitar a vida da moça. Forjava matizes, roubava nuances, inventava-lhe em cores várias e outras cambiantes.

Certa vez deixou o entardecer cinzento só para que ela trajasse um vestido alaranjado em noite de lua azul. Noutra despojou o mar de suas riquezas para colocar-lhe no busto um colar de conchas rosadas. E os transeuntes, coitados! Fê-los todos nublados para que no chão se formasse um espetáculo de sombras coloridas para deleite e gozo sagrado da plateia ímpar. Houve ainda aquela vez em que desnudou bosques e matas sem fim, mas valeu a pena ver o brinco esverdeado pendurado na orelha da moça e o arco-íris dobrado no céu pra vê-la com mais nitidez, irisando-lhe o rosto.

Porém não tardava o poente, dado que a moça levava o sol nas costas. Adentrava as noites a compor ensaios sobre ela. Destinava-lhe recifes, corais, canções simplórias. Havia sempre um verso caído no portão esperando a sua chegada em casa após o trabalho. E ele foi-se apaixonando pelo invento.

(...)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Conto (Parte I)

Glósóli – Sigur Rós

Era uma vez um ladrão. Andava sempre desocupado e sobrevivia das aspas roubadas. Dedicava-se em tempo integral às inutilidades. Não bastava ser larápio, ainda era mentiroso. Não servia lá pra outra coisa que não fosse à poesia.
Foi quando ele não tinha lá muito que fazer que inventou a moça. De tanto que não tinha, se punha a cultivar agrados literários na enseada pr’uma das amadas. Daí que a moça passou... Levava nas mãos uma máquina de parar o tempo e parou-o uma, duas... tantas vezes sem consentimento. E quando o tempo, contrariado, voltou a bater na beira, ela perguntou:
“Que são?”
“Poemas.” disse o moço.
“E pra que servem?”  quis saber.
“Fechai os olhos” – mas a moça nada viu nem ouviu, ao que embarcou numa nuvem e foi brincar de parar o tempo em outros mares.

(...)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Tempo de pipa

Dilata coração, dilata
Abranda o meu olhar, abranda
Acalma o meu devir, acalma
Pro vento me fazer varanda

Soprar no meu quintal, teu cheiro
Soprar no meu pulmão, as velas
Eu sonho rimas e aquarelas
Mal caibo no meu travesseiro

Eu tenho de nós dois, um mapa
Eu vou te rabiscar na estrada
Teu gesto e tua latitude

Nós vamos enfeitar de pipas
O tempo e decorar os dias
Que aumentam nossa longitude