quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

Teu Poeta

"O mar batia em meu peito, já não batia no cais"
Carlos Drummond de Andrade

No começo era a palavra que se disputa... Veja bem, ela é que se disse primeiro, não fui eu. Eu sou apenas o poeta. O que faço é fabular...

O que faço são desvios organizados na linguagem, no corpo da linguagem. Licença poética me foi concedida para burlar a gramática. Sou eu aquele traço em fuga da linearidade dos reles textos quotidianos. Meus dias e noites são tecidos de um olhar sempre enviesado, prisma de quem anda a enredar os fatos. E me vou singrando por águas ainda virgens...

Há algumas coisas que não dispenso ao meu viver. Café, cigarros e a chuva batucando no telhado. É preciso criar jardins, engendrar nos canteiros matizes doutros tempos... É preciso ter amigos boêmios aos quais se brinda as singularidades. É preciso abraçá-los. Mas também andar sozinho pela madrugada. Passear com o guarda-chuva, atravessar ao outro lado da rua para colher uma flor, agachar-se e desistir. Eu deveria usar mais a palavra “relva”. Deter o olhar num riso de criança. Vezenquando se ancorar nas enseadas a ler os barcos que retornam quando o sol se vai.

Sou destas palavras o poeta. Sou quem as escreve com ternura. Quem as conjuga com lirismo e as despe com ardor. Mas tão logo as componho as deixo escoar por entre os dedos. Eis a minha sina, veleidades. Ser delas um momento sublime, ser somente uma lembrança, a mais doce lembrança. Aquela lembrança que assoma nos dias entediantes de suas vidas sem semântica, a nostalgia de um instante de poesia que não soube permanecer. Um sopro de magia que se desfez por entre as flores. E a estória que eu inventei se dissipa pelos mares na boca dos pescadores...

E se a gente contá-la pelas ruas, ninguém vai acreditar, virou lenda.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Telegrama II

À Tâmara mulher de todos os santos

Mais do que nunca preciso te deitar aqui. Tua nudez semântica é minha salvação. Tirar-te uma a uma as vestes: começar pelas tuas margens, tesão maiúsculo, a letra “a” que te finda, deixar somente o verbo no âmago, verbo mais que conjugado nos últimos tempos, verbo sacro. Desautorizar, tirar as aspas pra chupar os seios da palavra, porque palavra boa, uma vez proferida é assim: se disputa e deita com todo e qualquer que queira fazer dela um refúgio, cais ou estandarte. Necessito tua promiscuidade que me regenera. Vem pra mim, desejo capitular teu corpo, escrever dedicatórias ainda virgens.
Veja o que fizeram do nosso bordel. Tudo começou quando tirei a primeira palavra do papel e me deitei sobre ela. Levou-me a estados de espírito insondáveis, transcendeu minha literariedade, neologizou meus vocábulos. Fez-me poeta contra a vontade, eu que era somente escritor, teu escritor na verdade. Compus elegias naquela pele jardinada, colhi as flores naqueles jardins suspensos, me entreguei. Durante algum tempo foi segunda pessoa do singular de todos os meus escritos. Cheguei a pensar em largar a prosa, tamanha a versificação a que me submeteu. Mas Dionísio teve complacência de mim e soprou-me ébrio na varanda dentro da noite escura.
Foi então que proclamei mentiras com sinceridade indevida, perdendo-me nos labirintos. Ali fiquei literariamente, litoral amante que me traga, que me leve aos corsários que fazem cerco do meu coração. Mas a palavra que soprei não se entregou aos meus silogismos como fazia noutros tempos, permeando as entrelinhas. Desconfio que ela goste de ser escrita aos poucos e com zelo, ela gosta é de poesia.
Ah Tâmara, eu ando gauche, tão gauche na vida. Mais que bêbado, estou lírico, lírico, lírico... fazendo hora só pra ver ela passar de vestido. E ando sibilando até ao comprar pão pela manhã, como se fosse a coisa mais linda do mundo. Não, isso não podia acontecer comigo. Perdido assim, sem embasamento teórico, discorrendo em linguagem tão simplória. Medindo as profundezas daquele olhar de menina, talvez em vão. Haverá algures enseadas que me esperam? Sinto-me à deriva, completamente à deriva de quem diz algo com a boca e desmente com o olhar, desenganos.


Então revogo a ti Tâmara mulher de todos os santos, a cura disso tudo. Faz nas minhas veias o sulco que o arado faz na terra, espreme na minha boca o suco que encharca o pomo que te nomeia. Peço-te: faz da minha carne o teu rascunho e reabre as cortinas deste antro de perdição que criamos. Porque assim como você, assim como tu eu não tenho mais salvação.

domingo, 5 de fevereiro de 2012

Na Varanda

Acho que me encantei foi pelo teu nome. Desde sempre que ando com teu nome na boca, cuidando baixinho para não olvidar. Desde sempre que escrevo o teu nome em pedras, sóis e firmamentos para apagá-lo depois no contar dos dias, moça que se lê do avesso. E quero-te assonante ao final de cada estrofe.

Despido das teorias que me disfarçavam fui transformado em eu - lírico e desde então me apaixono por toda palavra que pouso no papel. Trago no olhar profundezas do mar oceano, o canto triste que se faz ressaca nas rochas, sibilando nesta aurora que evoca sobriedade e traz à tona a certeza de mais erros cometidos, das verdades mal contidas que ecoei nos teus ouvidos. E no embalo da rede vou tecendo na madrugada os meus poemas etílicos que já nascem póstumos. Nem desconfia dos versos trôpegos que me assomam enquanto lanço em ti meu olhar ébrio e simulo nas entrelinhas passeios sem volta nas tuas pétalas rosadas, meus desejos mais recônditos. E ao te ver em letargia, as pálpebras descidas e um sorriso doce nos labirintos, crio enredos e cenários ao teu sonho. Eis que abre os olhos e é como se venezianas fossem abertas nas nuvens. Já não há embriaguez para alegar como desculpa para a timidez esvaída. Só me resta condenar mais um poema ao meu viver...

quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

Amaria

À Antonia Maria Nunes, mestra e amiga,
sem a qual essas palavras não se deixariam ler

À Maria eu dedico estas singelas palavras, com todo o respeito na desmedida do impossível dentro deste recinto aberto, recito que, embora merecedora de poemas em forma fixa, com versos metrificados e tudo o mais que um verdadeiro mentiroso seria capaz de compor, vai ter de contentardes com essa maledicente prosa poética, é tudo o que tenho.

A Maria, antes mesmo de se confessar artífice da palavra, deixou-se levar pela prosa fiada deste humilde discípulo que, embasado em Teoria, atreve-se a discorrer na prática o que lhe é concedido. Dos subsídios que provêm de Maria, vai tecendo timidamente sua literatura sem-vergonha, vã filosofia da linguagem. Integrante desse esquema de corrupção de palavras, algo que os linguistas chamariam uma desconformidade entre significantes e significados, a Maria é tudo, menos inocente. Se o poeta é um rufião, a Maria é a proprietária do bordel. A Maria é a medida racional das passionais orações às quais o suposto escritor se devota.

Amaria tudo o que não fosse mero vômito de idéias no papel. Inspirar não seria o verbo comumente por ela empregado, a Maria é um tanto quanto cética no que se refere a esses mitos românticos. Prefere acreditar no trabalho estético a que se dedicam esses marceneiros da palavra, sempre lapidando aqui e ali a estrutura, não se dão por satisfeitos tão facilmente. A todo canto levam seus instrumentos semânticos, sintáticos, lexicais...

Eis que emprego todas as conjunções adversativas para tentar entender que a Maria não se faz mais presente. Uma lágrima verte agora e faz de conta ser riacho, percorre o meu rosto rumo ao papel que se encontra entre minhas mãos. Juntam-se a ela outras e logo parece ser um rio caudaloso desaguando na foz do poema, borrando as letras e então se torna difícil trabalhar a linguagem de maneira literária... É como se depois de dois anos carregando a tua bagagem, ficasse tu nas gares e tenho eu de seguir sozinho, meio sem rumo ainda, perdido, perdido como um pobre bicho com os sentidos alterados. Foste a melhor companheira de viagem que já tive.

Amar ia, de coração este poema, não fosse que a gente finge não ter um quando tem nas mãos a pena. E também isso eu aprendi com a Maria. Mas meu pranto não é literatura, é vulgarmente sentimento, saudade anunciada de escutar teus dizeres toda semana ecoando em minha alma, teus saberes apressando a minha calma.

Ah Maria! Vai-te pela estrada da vida, ama, ria e segue o teu caminho que não é mais o meu. Tens aqui um admirador que por ti acreditou ser poeta, que bebeu da tua fonte de sabedoria e agora se submete ao crivo da tua severa análise, Maria.