terça-feira, 23 de agosto de 2011

Os Grãos



Não havia em ti nenhuma poesia. Não passavas de uma mulher comum entre tantas. Tudo o que te brotas foi meu olhar quem conferiu. Sob minha pena desprendi de ti os versos, a prosa doce. Fui eu quem te debruçou no parapeito da janela, colocou-te a flor nos cabelos e soprou teu vestido. Não passavas de uma mulher vulgarmente comum. Como estas coisas despojadas de amor-próprio até que o olhar do cronista lhes confere algum valor, assim eras tu. E os homens que te levam para o leito tentam em vão divisar nas nuances as assonâncias que te dei. A tua métrica foi trabalho do meu pulso, em versos decassílabos fiz abrir tuas vogais fechadas. Tu nunca foste além de tudo isso: pretexto para a minha poesia vil, platonismo deste poeta errante, amor não vivido, preterido em favor da escrita. Porque se tivéssemos consumado o que só eu idealizei, não haveria chuva, nem poema, nem giz na calçada. Tudo não passaria de realidade fria igual a esta em que se transformou a tua e a minha vida. Mas que diabos, vens tu agora e reclamas que te despojei do altar, fazendo-me largar o jornal, perder a paciência e abrir de novo as portas deste bordel, sem dinheiro pra pagar as contas. Tantas moças que me pagariam em liras e eu aqui perdendo o meu tempo, dinheiro e artesanato contigo. Tantos corpos clamando por dois quartetos e dois tercetos, formas fixas ou versos livres que sejam, e eu aqui, cigarro na boca em frente à tela do computador tecendo em prosa enquanto o meu café esfria ao alcance da mão. Deve haver alguma explicação satisfatória para este meu ofício abnegado de dedicar-te flores, trovas e fenômenos da natureza. Com sua licença, vou assistir ao movimento dos pombos na praça de eventos do mercado central. Pra que horas é o acaso?

sexta-feira, 19 de agosto de 2011

ALUGA-SE





















Não pensas que é empresa fácil reordenar estas palavras. Depois de algum tempo ausente, elas se recusam a exercer as funções sintáticas que outrora designei. Não me basta a inspiração, é necessário muito trabalho, trabalho árduo, as mãos calejadas pela pena sob sol a pino, trabalho estético, como esses operários mal remunerados do campo das letras entre os quais me disfarcei. Nenhuma delas agora me obedece aqui neste bordel. Se acaso deito alguma no papel, antes de cravar meu verbo e dar forma ao enunciado, me acusam de assédio semântico. Outras alegam em suas defesas que estão dentro do período. Outras ainda deram agora para compor orações, como se isso lhes aliviasse os pecados de outrora. Dissolutas! Libertinas! Não se sujeitam de modo algum às minhas sentenças. Algumas, ouvi dizer, nem estão mais aqui, segundo informações de terceiros, arranjaram algum velho decrépito que lhes sustentasse o ócio. Vejam só, como se não bastasse ainda perco clientes. Não possuo mais dicionário para exercer a função, de modo que não estou apto a agir dentro das normas. É de se levar em conta a possibilidade de me denunciarem. Não calculei ainda o prejuízo, muito provavelmente este antro foi condenado à falência. Não me resta mais nada agora senão juntar minhas coisas e ir fazer crônicas. Aqui jaz este velho boêmio que tão fielmente vos serviu, vai saindo taciturno, cabisbaixo, escada abaixo. Vai levando o seu sotaque e este olhar crônico sob todas as coisas despojadas de amor próprio, eis tudo o que tem agora. Mas repara, antes de ganhar a rua ainda revela: vai levando consigo um singular riso de poeta no canto da boca.