terça-feira, 24 de dezembro de 2013

Foz

Acción Poética Tucumán - ARG

Confesso que te inventei. Não és tu a criação da madrugada, nem mesmo das últimas semanas ou meses. Levei toda a vida para te deixar assim tão bela. Foram anos e anos de árdua labuta nas lúridas horas da noite. Fui tecendo uma obra que não enxergava, me cabia imaginá-la. Dos retalhos finais de domingo, fui cosendo a rede na qual nos abraçaríamos em uma longínqua tarde empoeirada. E seria este abraço o decreto de nosso gauche destino. Fui tecendo a rede mesmo sem ter onde pendurá-la. Porque nunca fui tão afeito às paredes: de que mais servem elas senão para pendurar o amor a tarde inteira? E ainda não tenho onde pendurar o nosso, e por isso te carrego pela mão sobre as pontes, as tardes cobertas de poeira, a escuridão das ruas, a devassidão e pureza dos rios e dos risos nossos, pelos bondes e pelos barcos. Procuro um lugar onde pendurar a rede que teci para que me cubra de ternura sobre a brisa vespertina. Procuro um lugar que seja nosso.
Mas eu não a via. Havia somente um rumor da singela beleza que te comporia. Comecei então por inventar a tua voz. Foi no que primeiro me perdi. Eu era um homem rude, andava roto, carregava pesadas tralhas a semana inteira. Era na tua voz que eu descansava. Tua boca já era nesse tempo para mim um alento. O ensejo da perdição. Palavra já era, mas ainda arraigada à oralidade.
Eu não a via. Bastava-me ouvi-la. Eis que te leio. Eu não havia mais, éramos nós. Éramos nós pelas praias do mundo. Foi no que segundo me perdi. Ao ler as palavras que trouxeste à minha beira pude perceber que “algo existe em ti mais escuro que a noite, mais profundo que o tempo”. E a obra já começava a transcender o autor.
Eis que te encontro: foi a terceira vez que me perdi. Tentei ainda desviar o olhar, propus que olhássemos sempre na mesma direção, lado a lado. Mas nossos olhos eram como rios a buscarem seus afluentes, continham a impetuosidade de águas revoltas, traziam detritos de muito tempo, de muito longe. E apesar dos ventos contrários, contra rios, nada pode conter águas que se buscam. Foi então que meu olhar desaguou no teu: eis que te beijo. Foi a derradeira perdição. Ao tê-la em meus braços pude compreender o leito de toda a vida. Pude vislumbrar o curso das águas defronte. Pude antever mares até então imaginários. Imagina rios que se cruzam e seguem de mãos dadas e serenas a caminho do mar. Assim o somos.
Concedo-te a primeira prosa. Que falta ainda para eu te deitar em verso?

quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Blues II



Mia Dona, perdoe-me a ausência! Não dei por mim que tinha voltado tão brevemente. Ando recluso. Laborando meu arcaísmo para voltar um dia ao poente. O porvir é como uma frágil planta arraigada a terra, em que a raiz é mais forte que a planta em si. Tenho me dividido entre a morte de uma longa prosa e os versos vindouros aos quais já me sinto condenado. Tenho vivido as mais singelas e também as mais doídas coisas da vida. Tenho amado e sofrido sem me preservar, tenho escrito poemas sem os publicar, mais que isso: tenho feito poemas sem os escrever!
Antes desta procela, mais uma palavra que se foi. Antes que murchasse, pude extrair do gineceu uma obra inaugural: um soneto, árduo, metrificado, perfeito, o melhor que se poderia talhar nestes tempos já tão idos. Um soneto jogado no lixo, como uma flor de esgoto. Coisas de poeta ultrarromântico que sempre morre de tuberculose no final da madrugada... mas no agônico suspiro consegue ainda talhar de modo rupestre um adorno à posteridade! Talvez não tenha sido mais que uma represália ao modo deselegante e nada cortês com que se tem tratado a poesia contemporânea. Talvez no mesmo ato assim eu o tenha feito: como fosse ela uma equídea xucra e lhe bastasse ajaezar o dorso para dominar-lhe os aspectos formais. Contudo, quis somente demonstrar domínio técnico para dizer que se o aspirasse, Poeta seria, mas prefiro conservar-me na anônima tecelagem desta prosa suja. Não hei de trazer primazias que careçam do verbo sentir ao nosso Bordel. Talvez eu deixe cair aqui um ou dois versos que nem sequer alcem rima, como um terno pássaro que sai pela primeira vez do ninho e se preocupa mais em descobrir o mundo circundante que voar. Talvez três versos que tenham a ingênua pretensão de haicai, mas serão eles a mentira mais verdadeira, virão do âmago, ainda pulsando e serão correspondidos plenamente.
Mia Dona, confio na prosa que leva entre as coxas para tomar conta deste prostíbulo e satisfazer os poucos clientes que ainda nos restam. Se acaso te enamorar por algum deles, tens o meu consentimento e uma placa de "aluga-se" atrás da porta, basta pendurá-la no lado de fora junto com teu coração.
Agora dê-me licença, um beijo e um último cigarro que tenho poemas a viver. Eu que outrora os escrevera nos muros, para-brisas e enseadas, agora os farei em minha própria carne à flor da alma. E se me quedar do onírico, restará chorar um blues e fumar um charuto tendo a certeza de que não tive medo de morrer e por isso vivi. Afinal, nunca este quintaneio me foi tão apropriado: “que importa restarem cinzas/ se a chama for bela e alta”.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Blues

Who wants to play with me - acryl - por Theo Reijnders

Senhor, eu tive uma mulher...
Por mil diabos, é como se o texto travasse comigo uma batalha voraz. É como se a indomável criação, malfadada e ingrata, não se submetesse mais à pena do criador. Oh maldita e inóspita palavra!
Empresto meus ouvidos ao vendedor de livros, ao vendedor de flores, e me dou conta das agruras do mundo. Vou até o boteco mais sujo, peço uma cerveja, procuro no bolso um cigarro e me dou conta de que não fumo há uns três anos e pior, pior, senhores: é tudo tão descritivo, mera denotação! Pior, senhores, é tudo tão clichê! Sim, sim, admito: estou na moda, senhor. Eu, que sempre velho e blues atravessava a pé as madrugadas desta cidade, como um boêmio lobo de estepe ou mesmo um cachorro sem dona. Eu, que sempre pedia um café e me demorava nas gares e como um dedicado cronista das inutilezas acompanhava a geometria das linhas traçadas pelo voo dos pombos da praça do mercado central. Eu, que me detive no cais a ouvir conversas e violas dos estivadores, em troca de cachaça e alguns versos etílicos que nem cheguei a publicar. Este velho operário semântico mal assalariado pela hermenêutica burguesa e disforme de palavras já tão desgastadas pelo emprego informal neste prostíbulo há muito abandonado... está na moda. A poesia está na moda. Mas ninguém cuida dela como a gente fez esses anos todos, enquanto outras coisas estavam na moda.


Praguejo a todos os cantos: cuidem de outros contos, coloquem outras coisas na moda, me deixem em paz, diabos! Pois sabem todos que em breve a abandonarão sem ter-lhe acrescido nada. Então ela virá, toda prosa no meu colo e eu terei de curar-lhe as chagas e fazê-la verso outra vez.

quarta-feira, 5 de junho de 2013

Telegrama VIII

Para, agora Dona, Tâmara, minha cafetina.
Ah Dona Tâmara. Enquanto os teóricos divergem sobre o que será prosa e o que é poesia, eu não sei o que faço da minha. Pois bem, são sinônimas. Não, não estou a par dos estruturalistas, nem dos outros; eles digladiam na mesa ao lado por coisas mais relevantes. Digo que são sinônimas a poesia e a vida. E a prosa consiste na maneira como a gente tenta levá-la. A gente tenta levar uma vida linearmente promissora, mas não tem jeito: sempre acaba caindo na vala profunda de uma estrofe. Há sempre um eu-lírico que põe tudo a perder. A definição que te dou não se encontra em nenhum compêndio acadêmico, mas é empiricamente comprovada pelos becos.
Sei que estás a pensar que lá vou eu reclamar-te dos meus amores literários, mas foi pra isso que te inventei. Então cala a boca e chupa. E dá-me outro conhaque.
Eu te inventei pra mim. Tu e as outras – não fazeis este semblante magoado, sabes que sempre foi a minha cafetina. Inventei-as para que compusessem meu bordel. Enfeitei-as de flores, de fitas e cetim. Concedi-lhes significações várias. Dei-lhes um trabalho indigno e em troca obtive muitos gozos e o coração partido algumas vezes. Apaixonei-me foi pela Literatura. Apaixonei-me perdidamente pela minha obra.
Mas um dia, sem rumo pela rua, deparei-me com aquela que foi a minha derradeira perdição. A princípio, sem noção do risco, quis empregá-la em meu bordel. Trouxe-a pra cá, dei-lhe um banho e comida. Ela, contrafeita, sorriu. Mal desconfiei das suas intenções perversas: transformar meu antro num lar. O restante da estória tu bem sabes...
Foste tu a minha mais duradoura invenção. Lembro com nostalgia aqueles tempos em que te sentava em meu colo e enfiava um dedo de prosa todo santo dia. Rememoro com saudade quando fazia do teu ventre o meu tinteiro. A gente ria e trabalhava.
Pois bem. A sensação é de que este bordel findou suas atividades ao público. Há um bom tempo. É como tentar vender maçãs-do-amor naquele que foi o bar mais promíscuo das redondezas. A prosa maldita cessou, só nos restaram alguns versos castos. E não sei como vou ganhar a vida. Nem a senhora.

sexta-feira, 26 de abril de 2013

Conto (Parte III)

Glósóli – Sigur Rós


O dia raiou e quis a moça uma fita para pôr no cabelo, da cor anil. O gatuno então perambulou pelas ruas, depois pelos prados, visitou outras aldeias, invadiu castelos e nada daquela cor encontrar. Extenuado da longa peregrinação, parou pra descansar no leito de um rio, ao que olhou pra cima. Não teve culpa, era preciso enfeitar os cachos bonitos da moça.

Após quarenta e quatro ocasos, voltou ao seu planeta trazendo aneladas aos dedos várias fitas dos mais diversos tons, exceto o anil. Na extremidade de cada uma das fitas havia um balão da cor correspondente. Dispô-los no ar para perfeito encantamento da moça. Aeróstatos lilases, esverdeados, escarlates... satisfaziam o seu alado olhar e distraíam-na enquanto o moço colocava uma fita em seu cabelo, da cor do seu pedido. Mal sabia a moça... Maravilhada com o mosaico de balões, não deu por si que o céu transparecia. Nem ao menos percebeu que o moço também não tinha cor. Como um palhaço que espalha o riso, mas tem por detrás do nariz aquele vazio existencial de que são acometidos os verdadeiros artistas.

(Fim)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Conto (Parte II)

Hoppípolla – Sigur Rós

Era tempo de pipa quando se reconheceram no olhar um do outro. Há alguns meses que o ofício abnegado do antigo jardineiro era colorir as tardes da moça. Plantava-lhe na face um breve sorriso que germinava alegria. E antes do pôr-do-sol ela lhe pôs um apelido engraçado: “entregador de arco-íris”, ao que ele sorriu também com rubor. Cativou-o. Passava as tardes a enfeitar a vida da moça. Forjava matizes, roubava nuances, inventava-lhe em cores várias e outras cambiantes.

Certa vez deixou o entardecer cinzento só para que ela trajasse um vestido alaranjado em noite de lua azul. Noutra despojou o mar de suas riquezas para colocar-lhe no busto um colar de conchas rosadas. E os transeuntes, coitados! Fê-los todos nublados para que no chão se formasse um espetáculo de sombras coloridas para deleite e gozo sagrado da plateia ímpar. Houve ainda aquela vez em que desnudou bosques e matas sem fim, mas valeu a pena ver o brinco esverdeado pendurado na orelha da moça e o arco-íris dobrado no céu pra vê-la com mais nitidez, irisando-lhe o rosto.

Porém não tardava o poente, dado que a moça levava o sol nas costas. Adentrava as noites a compor ensaios sobre ela. Destinava-lhe recifes, corais, canções simplórias. Havia sempre um verso caído no portão esperando a sua chegada em casa após o trabalho. E ele foi-se apaixonando pelo invento.

(...)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Conto (Parte I)

Glósóli – Sigur Rós

Era uma vez um ladrão. Andava sempre desocupado e sobrevivia das aspas roubadas. Dedicava-se em tempo integral às inutilidades. Não bastava ser larápio, ainda era mentiroso. Não servia lá pra outra coisa que não fosse à poesia.
Foi quando ele não tinha lá muito que fazer que inventou a moça. De tanto que não tinha, se punha a cultivar agrados literários na enseada pr’uma das amadas. Daí que a moça passou... Levava nas mãos uma máquina de parar o tempo e parou-o uma, duas... tantas vezes sem consentimento. E quando o tempo, contrariado, voltou a bater na beira, ela perguntou:
“Que são?”
“Poemas.” disse o moço.
“E pra que servem?”  quis saber.
“Fechai os olhos” – mas a moça nada viu nem ouviu, ao que embarcou numa nuvem e foi brincar de parar o tempo em outros mares.

(...)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Tempo de pipa

Dilata coração, dilata
Abranda o meu olhar, abranda
Acalma o meu devir, acalma
Pro vento me fazer varanda

Soprar no meu quintal, teu cheiro
Soprar no meu pulmão, as velas
Eu sonho rimas e aquarelas
Mal caibo no meu travesseiro

Eu tenho de nós dois, um mapa
Eu vou te rabiscar na estrada
Teu gesto e tua latitude

Nós vamos enfeitar de pipas
O tempo e decorar os dias
Que aumentam nossa longitude

domingo, 3 de março de 2013

Monólogo


“Como não haveria de ser eu um Lobo de Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito!” *

Tenho sido feito de ausências. Eu que fui capaz de amar as putas, de profundidades e intempéries me estendia, de incautos voos me assegurava. A vida sempre teve, em mim, implicações mais densas. Como um eterno viajante, que nunca partiu, mas esteve sempre se sentindo de partida, de partida, de partida... E as viagens interiores certamente são as mais rudimentares. De Provença, um menestrel aos bordéis russos e tabernas; do anonimato fiz meu Danúbio e fui pierrô parisiense. Narrador personagem de todas as mentiras, de todas as invenções que, por si só, justificavam as demais insuficiências. Quem antes talhava a folha como um colono arando a terra com fervor, quem fora iniciado na alquimia oculta do verso e fez prosa como poucos, não há mais. Contudo, mais desesperador que a falta de escrita, é o olhar. Falta-me enredo. Ando pelas ruas e vejo as pessoas como são. Este mundo é denotativo, meu deus. Confortavelmente denotativo e os habitantes são alegres, de uma alegria superficial e verdadeira. Não há mais quem saiba forjar com destreza, não há mais inventores como nós. Ah se eu não tivesse te matado, mas matei a poesia. Só restaram os outros e talvez eles até tenham razão. Contudo, a razão não é uma coisa que se aplica a seres da nossa natureza.

“Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo.”*

* Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

O Palhaço

Payaso Tirste, por My Buffo, en Puente de San Marcos (León).

Sou palhaço sem futuro
neste circo virtual
ignóbil aliciador da aliteração
Poeta vagabundo do espaço sideral
traficante das palavras
e dos versos sou ladrão

Se por ventura perguntar
te respondo com candura:
_Sou a 3ªpessoa do singular
alhures, a te observar
com singularidade

Não tenho rosto, nem sexo,
muito menos vergonha
Dinheiro anexo ao bolso?
Nem se sonha !

Mas tenho sonhos, saudade
muitos neologismos
uma pena apenas
e a cara toda pintada

Uma mente um tanto adubada
semente nela irrigada
somente com poesia

Da razão eu sou o riso
da rotina, o antídoto
e não tenho anestesia!

sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Tabacaria

Não sou nada
Nunca serei nada
Não mais que um verso
Sem outro declame
Que a voz suspeita dos amigos
Sem outra condecoração
Que a ameaça sublime do inimigo

Somente um verso
Sem outro refúgio
Que o terno colo das amantes
Sem outro ágio
Que a companhia nas estantes

Um mero verso
Sem outro cais
Que a prateleira de papel
Sem dizer mais
Do que verdades sob o véu

E a eterna condição de rimar
É o meu algoz
Mais cruel.

quarta-feira, 9 de janeiro de 2013

Lembrança

“Compreendendo que a função de toda gaveta é de suavizar, de aclimatar a morte dos objetos, fazendo-os passar por uma espécie de lugar piedoso, de capela empoeirada onde, sob pretexto de os manter vivos, arranjamos-lhes um tempo decente de triste agonia” _________ Roland Barthes
E foi num dia cinza, com a chuva chamando na vidraça, que me lembrei daquela gaveta. Uns discos, um livro, uma fotografia em preto e branco. Mais três cartas e uma caderneta rabiscada. Cinco elementos incapazes de contar uma estória. Mas são estas quinquilharias que tentam em vão convencer-me de que não foi um sonho... E se eu te inventei? E se, em meu afã de desmembrar-te em versos, fiz da tua pele o papel? E se desde então a saliva que te oferendam não tem outra função que o virar da página? De repente percebi que já não lembro a tua voz nem nossos planos. Sobrou-me na memória um mosaico difícil de amenidades: um telefonema, uma dedicatória, um riso no momento preciso... Nada que reconstitua a tua imagem no meu olhar. Já não és palpável ao ponto de versificá-la com engenho. Mas prometo uma prosa já murchinha na janela, enquanto me lembrar de ti. Tivesses sido apenas mulher e eu recordaria a cor lilás, o suco de mangaba e outros pormenores que compõem o cotidiano, dilatando-o. Mas tu foste palavra! Soubeste tirar de mim a eternidade.

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Gauche II

“Havia achado, sempre, que morrer de amor não era outra coisa que uma licença poética.”
García Márquez in Memórias de minhas putas tristes.
 Errei pelas ruas e conheci os amores mais efêmeros. Embebido pelo espírito do vinho, declarei-me lírico nas gares. Soprei ébrio dente-de-leão na varanda e, ao contemplar a leveza da queda, perdi-me nos labirintos do nome dela. Acordei no embalo da rede e já era outro quadro que estava pendurado na parede. Inalei o aroma esfumaçado da rubiácea matutina. Ancorei meu barco na beira da morena, mas o mar me chamava noite adentro. Despedi-me e fui plantar tulipas, orquídeas e amores-perfeitos na madrugada, para colher violetas efêmeras na enseada durante o arrebol. Recebi as mais poéticas ameaças de morte e guardei-as na lapela com orgulho e desdém. Partilhei corpos na vala profunda de um soneto. Colhi tâmaras nos rochedos e, nos pomares, esmeraldas. Despetalei-me em mal-me-queres, mas o bem querer foi regresso de retalhos costurados entre estrelas. Bailarina me veio no abraço, enlaço de ondas e o riso a vogar. Sibilei com doçura uma cantiga ainda virgem. Fui ver a vida a pé e deixei entrar setembro pela janela. Vi com tristeza a mesurada trova que compus ser noticiada no jornal em linguagem denotativa. Pra viver comigo há que ser poema. Pra viver comigo tem que ter bem mais que o verbo no âmago, tem que se abeirar... dilatar-se até perder as sílabas e só então, já sem asas nem respostas, precipitar-se no desconhecido vale (a pena?). Pra viver comigo, pedi-me em casamento. Vivi, amei a mim mesmo como se fosse o último a saber...