sábado, 31 de março de 2012

Labuta

Certa vez um filósofo que não era grego e ainda menos clássico cunhou o seguinte aforismo: “Um homem tem na vida que decidir entre dois pêndulos: Ou segue o relógio; Ou escuta o coração.”

Escutei o coração. Pois que toda a minha vida tem sido a maldição desta sentença. O que disse o meu coração? Poesia. Por culpa da poesia perdi a minha mulher. Por causa da poesia inventei um amor e fiz de conta que era literatura. Por conta da poesia escrevi outras palavras... Acabei por me tornar rufião de bordel. E agora vivo assim como num conto.

Resolvi então consertar meus ponteiros e arrumei outro emprego. No turno matutino já é sabido que carrego coisas, bom labrego que sou, realizo tarefas braçais das quais depende toda a estrutura social, especialmente a ociosa e improdutiva burguesia que, sem homens suados como eu, morreria de sede. Contudo consiste o emprego vespertino em fazer companhia aos fantasmas, quando bailamos de acordo com as sinfonias dos vinis, recitamos poemas uns aos outros e tecemos versos, serviços intelectuais dos quais depende toda a estrutura social, especialmente a laboriosa e produtiva burguesia, que não fosse homens inventivos como eu, morreria de enfado. O pouco que me pagam para essa erudição forçosa mal dá para o pão e a cevada. Penso que para o bem das horas que me restam devo me demitir. Porém continuo me escrevendo...

quinta-feira, 29 de março de 2012

Telegrama III

Para aquela que chega mais molhada quando vem de longe.

Bem sabes que nem toda palavra que deito sobre o papel eu escrevo. Exijo delas ressonâncias, profundidade semântica. É preciso que eu vislumbre em qualquer despretensioso gesto o lume de poesia. É preciso que um arrebol preceda cada cerrar dos cílios e que placas tectônicas se movam ao menor afago. Só então empunho minha pena e traço sob a superfície intacta as primeiras glosas.
Tal propensão eu encontrei nos poros da tua pele alva. Tão logo a metaforizei em concretudes vicissitudinárias, quando ainda mau poeta era. Não tão medíocre que já não sublimasse o teu nome em profanos escritos. Por anos afins dediquei-lhe versos e fenômenos da natureza, sentimento abnegado ao qual ainda hoje me esvaio do ensejo do beijo para que, mediante as regras do amor cortês, me porte com a dignidade de um trovador medieval. Enfim compus a prometida trova, não tão despudorada que lhe umedecesse o tecido, mas o suficiente para tirar-te do lugar conforme me confessou que sempre faço. Admito que tal proeza não seja para o meu ofício lá muito difícil, dado a linearidade dos textos que compõem este lugar comum que habitas. Singular palavra que és, merecias uma ordenação mais elaborada da linguagem.  Algo como um altar, uma coroa de flores e um vestido estampado... não, esqueças o vestido, não terá serventia para os fins escusos aos quais me proponho.

 Dado que és dama de alta fidúcia não lhe és permitido tecer comentários que não sejam nos meus ouvidos, fingindo gozo e chamando-me Poeta. “Já que tem de ser, que seja em segredo” diziam as freiras enclausuradas nos conventos durante o medievo. Tais arcanos só se prestam a confundir ainda mais os meus devaneios, creio ser vaidade do teu ego para manter-me incólume a dedicar-te esta lírica trovadoresca. Ao menos servem para preservar a cumplicidade em nossas inefáveis trocas de olhares.

Quanto ao trato com frieza que me reclamas, parafrasear-te-ei nosso vate predileto: desconfia destes poetas que se fingem tíbios. Trata-se de uma frieza profissional e tão suspeita como a exuberante alegria das coristas. Bom farsante que sou, escondo aos presentes meu ardor interno, pois se não o fizesse poria abaixo todo esse vil empenho em parecer provençal.
Por fim venho lembrar-te um pretexto antigo que te concedi: Deixe que eu te toque com as mãos, mas jamais admita que uma só palavra minha penetre em teu ser, pois assim estará corrompida para sempre, e quem o disse foi Neruda, um mentiroso mais sincero do que eu. Conceda apenas o afago dessas calejadas mãos de operário semântico, de modo que permanecerá intacta em sua pureza de menina doce. A julgar pelas confissões que me fez, creio que já seja tarde.

domingo, 25 de março de 2012

Os Sete Corvos


DOUGLAS, Rafael. Os Sete Corvos, 2008.

Sob a noite enluarada
O nosso clã vagueia
Ruazinha acima
Um poste encandeia

E assusta um fantasma
Em plena madrugada
Ao ver livres espíritos
Rolarem pela calçada

quarta-feira, 21 de março de 2012

Trova

“Amor tão disparatado
Desbaratado é que é...
Nunca a sentei no meu colo
Nem vi pela fechadura.

Mas eu sei quanto me custa
Manter esse gelo digno,
Essa indiferença gaia
E não gritar: Vem, Fulana!”
Mia senhora
Fez-se alva e serena
Chuva que vem de lá
Deitar rebentos no poema

Sempre sem hora
A suceder as tempestades
Cobre os acasos
Sob o véu das minhas vontades

E eu me disfarço
Dum trovador provençal
E faço mesuras
Ai que amor medieval

Não tenho alaúde
Nem tu és palaciana
O pouco que pude
Foi revê-la esta semana

Suja de tinta
Esboço de plenitude
Traço inerente
À tua vil magnitude

O meu vil comedimento
Até quando agüentarei?
Manter esse gelo digno

E fingir que nada sei

Confesso que meu desejo
É tua veste arrancar
Tocá-la com realejo
E ao povo depois mostrar

Confesso que o meu querer
É o teu ventre deflorar
Colher-te do solo estéril
Sem tua sanha despertar

Confesso-me teu vassalo
A transgredir as convenções
A desposá-la num papel
Basta de tantas confissões

Destarte continuarei
Fingindo não te escrever
Tua prez preservarei
Enquanto finges não me ler

Do ensejo me esvaio
Do teu beijo molhado
No teu golpe eu não caio
Estou perdido ou perdoado?


“Como deixar de invadir
Sua casa de mil fechos
E sua veste arrancando
Mostrá-la depois ao povo

Tal como é ou deve ser
Branca, intata, neutra, rara
Feita de pedra translúcida
De ausência e ruivos ornatos”

O Mito - Drummond

segunda-feira, 19 de março de 2012

O Libertino

Não peças
Para que eu seja
O poeta do amor
Das coisas afáveis
Serei o poeta das putas
Porque é preciso haver poesia
Entre os abrires e fechares de pernas
Porque é preciso haver metalinguagem
Para que as coisas não se tornem meras
Vul ga ri da des

Traz nos ombros lembranças de velhos amores e outros escritos. Traz nos olhos confissões de que viveu sem se preservar. Traz na pele inscrições de abandono, descuido, excessos. E no riso traz delírios, traz nos beijos labirintos, nas mãos as ilegíveis linhas do tempo, nos pés tessituras de longas caminhadas. Alguém que fora um dia autor de várias personagens, que se fez delas enredo e acabou por se perder dentro dos cenários criados. Já não é possível viver outra coisa que não poesia, maldição.
Não será o poeta de uma palavra só. De modo algum abdica da carne dos seus amores literários, fazem parte do vasto vocabulário que exige a profissão de rufião semântico. Quer todas ao mesmo tempo, só assim é viável escrever um texto. A palavra solta, cultuada em única forma, não fomenta a literatura. Só é possível ser lido se houver poligamia textual. Mãos que o virgulam, pernas, parágrafos, coxas, seios de exclamação, gônadas de interrogação... E os termos vão se relacionando adulteramente até constituir orações com sentidos dúbios e diversificados. Amplo é o campo semântico de quem propõe amancebar-se.
Não esperará pelo acaso, ainda que casualmente lhe ocasione alguns casos. O acaso é tempo demais pra esperar. Quer a vida agora. Quer o sumo destes pomos, o sulco desta terra fértil, o vil odor destas secreções impregnando os tules, hastes de tulipas distribuídas nos cinzeiros do bordel e o suprimento etílico nas tabernas esfumaçadas.
Largou mão de ser escritor e agora vive como poeta, de flor em flor, vagando sem rumo, com rimas. Porque até mesmo um canalha precisa de afeto. Como aqueles homens do povo que adentram os lupanares em busca de afago para suas vidas sem sentido, assim também o é.


“Não há melhor túmulo para a dor do que uma taça cheia de vinho ou uns olhos negros cheios de languidez” Álvares de Azevedo em MACÁRIO.

domingo, 18 de março de 2012

Ah mar

“Tudo somado, devias
Precipitar-te, de vez, nas águas.
Estás nu na areia, no vento...
Dorme, meu filho.”
Drummond
Fotografia: Nielle Trindade

Porque eu
que nem sei nadar
estas águas
ando sempre a contemplar?

Qual o motivo
destas naus perdidas em mim,
Qual o sentido
destas gáveas e mastros sem fim?

Diz-me o porquê
dessas rotas que me traçam...
Logo eu que não faço mapas,
que os entrego às traças.

E nos meus pulmões sopram velas,
e o meu peito se fez proa,
e no meu casco dizeres,
manuscritos, haicais...
E no meu leito, cais... 
Sereias caem.

E dos meus braços lançam redes...
E os meus pés tocam náufragos...
Onde a foz destes rios oníricos?
Que detritos levam?
Velam qual lirismo?

Deve ser porque o mar
também não sabe nadar...
e por isso fica
dum lado ao outro a oscular
as beiras,
sem saber na qual deitar.

Há tanta coisa ainda pra escrever...
Há mar
Mas você me navegou
mares tão profundos
e eu fiquei sem rumo
e eu fiquei sem chão.

*Por sugestão de Nana Rodrigues, que ao ler minhas prosas, o faz em versos, pois em versos é que se dispõe a sua alma.

sexta-feira, 16 de março de 2012

Há mar

"O primeiro amor passou.
O segundo amor passou.
O terceiro amor passou.
Mas o coração continua."
Drummond

Porque eu que nem sei nadar ando sempre a contemplar as águas? Qual o motivo destas naus perdidas em mim, qual o sentido destas gáveas e mastros? Diz-me o porquê dessas rotas que me traçam... Logo eu que não faço mapas, que os entrego às traças. E nos meus pulmões sopram velas, e o meu peito se fez proa, e no meu casco dizeres, manuscritos, haicais... E no meu leito, cais... Sereias caem. E dos meus braços lançam redes... E os meus pés tocam náufragos... Onde a foz destes rios oníricos? Que detritos levam? Velam qual lirismo?
Deve ser porque o mar também não sabe nadar... e por isso fica dum lado ao outro a oscular as beiras, sem saber onde deitar. Há tanta coisa ainda pra escrever... Há mar.

 
"Mas você me navegou mares tão diversos
E eu fiquei sem versos, e eu fiquei em vão"
Chico Buarque de Hollanda

Tua estante

"Qual segredo se pode guardar?
Onde as nossas palavras deliram"
À Nielle Trindade
E a manhã eu te fiz de flores
E um pedido arrebatado
Concedeu-me num sorriso
Ser o maior dos teus autores

Entre Pablo, Paulo e Poe
Põe-me ali na tua estante
E eu aprendo com Neruda,
Leminski e outros semelhantes

Bruxarias e magias
Fizeram-me poeta, mago
Na ciência oculta do verso
Sou agora Iniciado

Alquimista das palavras
Te alitero com candura
Gozo em ti mil assonâncias
Com a minha pena impura

E tu cedes ao meu afago
Meu ritual de iniciação
É o teu vestido azul molhado

Eis que sou eterno amante
Meu coração em oferenda
Pulsando ali na tua estante

segunda-feira, 12 de março de 2012

Vingança

"Não há xampu, não há creme
que apague ou que desmarque
da tua pele o meu beijo
fedendo a conhaque."
_Aldir Blanc

És tu a palavra precária que fez do poeta um homem, do enredo um fato, do teórico um lírico. És tu a mulher rabiscada que desfaz a poesia, transforma tudo em vida, valida minhas mentiras. E de nada adianta eu beber em Drummond, andar pelas calçadas, errar pelas ruas e deter-me nas gares com o Quintana a soprar-me outra palavra nos ouvidos, nem me serve adentrar as tabernas na companhia de Sklovski, Jakobson, Tynyanov e Tomashevski. Nenhum deles crê no que invento. Recuso-me a beber, acendo o último charuto e vou saindo taciturno. Tua maldita subjetividade fez do meu pseudônimo mera sombra do meu ser. É-me difícil ser triste, ou mesmo contido.

Mas me vingo. Rio-me de todos os outros homens que te tocam. Deles tenho pena. Parecem analfabetos analisando um tratado filosófico. É que minha dicção é árdua. Já no primeiro cortejo comecei a transcrever-te para um idioma que inventei. Em nome da nossa predileção pelo mar, coloquei a legenda em uma garrafa e lancei às águas. Literariamante fui lapidando um a um os caracteres de modo que se tornassem símbolos. Tratou-se de um trabalho que me consumiu em meses. Por fim decretei feriado e te concedi o meu verbo em noite enluarada, em chuvosa aurora. Ao te penetrar na alma o fiz como jamais souberam. Engravidei-te de poemas. Desde então carrega em teu ventre o sêmen do gosto pelas artes verbais.

E do que a gente viveu eu escreveria mil sonetos, ah se não me faltasse a ciência do verso...

domingo, 11 de março de 2012

Mito

“Sou eu o poeta precário que fez de fulana um mito” Drummond

Contavam já três dias que eu pisava terra firme. Eis que te vejo. E te vejo de um ângulo que não podes me ver. Fico ali escondido a observar tuas feições demoradamente. Que haveria em ti de tão poético não fosse esse lirismo que te concede a minha pena? Esse descontentamento em permanecer na superfície dos fatos. É preciso enredá-los. Para o meu gozo te fiz palavra.

Se me fosse possível ficar assim te olhando a vida toda eu me tornava poeta de vez. Quantas naus terão perdido o rumo nessa tua boca que o meu veleiro se atreve a desvelar? Esse teu jeito de amarrar o cabelo, como quem faz do pescoço um cais seguro onde embarcar meus dentes. Teus olhos, pequeninos olhos, mas de um olhar tão profundo que me é difícil ancorar qualquer entendimento. E o sorriso, mesmo não sendo o mais belo em que naveguei, ponho-me a lapidá-lo para que se torne um porto. E desse jeito místico eu vou te inventando...

Ah fulana, se eu pudesse revelar aqui o teu nome. Ma te ensinei a ler poesia, te ensinei a se confundir, de modo que podes achar-me.

quinta-feira, 8 de março de 2012

Regresso

À volta de Noemyr Gonçalves, após dois anos de sorriso guardado...
Costureira de estrelas
Que regressa
E sem pressa retoma
A nossa conversa

Lembro da tua rosa
Protegida na redoma
Flor que a minha prosa
Na memória soma

Lembro os teus retalhos
Pelo bosque a me inspirar
Teu bom dia amigo
Vem me cativar

Teu meio sorriso
Em 3x4 no meu bolso guardado
Esses anos todos
Envelheci um bocado

Envelheci um bocado
No canto dos olhos
Mas mantive o sorriso
Pra te receber

Pra te receber

Mantive o sorriso inteiro

sábado, 3 de março de 2012

Labor

Não disponho, como os poetas consagrados, de condições para financiar o vagabundear. Não comprei o ócio, como aquele senhor inútil, pelo qual tenho o maior respeito. A minha vadiagem é exercida de maneira informal. Minha atividade de vagabundo é ilícita e me custa o pouco que ganho nos turnos em que carrego coisas. 
E aí estão as coisas a pensar os homens. Ruminando suas verdades, procuram para nós um sentido. A minha prosa é marginal e se enleva socialmente por qualidade de estilo. Trata-se de uma ascensão forjada, continuo em andrajos quando se termina o ópio. Não disponho de tempo para ressacas: ao surgir a aurora tenho que estar em posição de carregar as coisas outra vez. E como um homo laborans, invisível socialmente, vou aprendendo com as coisas que carrego a pensar os homens.
Por anos a fio os homens me vêem carregando as mesmas coisas. Me julgam na labuta estagnado. E eu, no anonimato que me é concedido, simulo um riso no canto da boca de quem vos escreve impiedosamente. E o meu maior deleite é escrever vossas mulheres enquanto se ocupam em fazer dinheiro para comprar mais coisas, para que eu as carregue enquanto penso-vos. Estes pobres homens ricos.
Mas basta de carregar as coisas. Já é hora de elas pensarem por si próprias.