sábado, 12 de novembro de 2011

Circular Cidade 2


"E para que serve pensar acompanhada senão para cultivar a solidão?"
Dinamara Feldens
Mais um dia ébrio por R$ 1,12 e meio. Pode ser a Lucidez um elixir ?
Lá vai o sujeito com seu passo torto pelas ruas, cabelo desgrenhado, barba por fazer e o olhar crônico sob as coisas, como se fosse o último a saber. Acende um cigarro e o mundo sem desconfiar que está sendo pensado continua passando displicentemente ao redor.
Nem só de mazelas se desfaz a Zona Norte. Há que se fazer justiça e contar as pequenas alegrias que a enredam: o horizonte empoeirado que se empresta como papel de parede para um futebolzinho entre córregos, cachorros vira-latas e vendedores de picolé. Há que se contar os pés descalços na rua, o grito da mãe chamando, banho de cuia, cabelo asseado, culto na igreja e o pueril desejo contido noutro olhar igual ao seu. Há que se contar as cadeiras nas calçadas em frente às casas que se dão a longas conversas senis. Há que se contar o cálido beijo com que a dona de casa recebe o seu homem após um mais um dia de carrego na feira e a algazarra dos estudantes voltando sempre mais cedo da escola. E embora a intelectualidade literariamente forjada, também ali se encontra cada vez que acaba a tinta, o livro fecha, se abre a tarde e vai se horizontando aos poucos, dilatando os braços do sol para se deitar detrás das casas, dos barracos.
Há que se contar que na Zona Sul, além da esbanjada alegria, há solidão nos apartamentos, cigarros esquecidos no cinzeiro e flores mortas nos vasos murchos das salas tortas. E também aí se encontra, não obstante o indumentário que lhe falta.
E no centro disso tudo é onde se pede e dá-se esmolas, onde se joga e cata-se lixo, onde se trocam olhares complacentes por um breve instante, antes do sinal abrir.
Dá sinal, o ônibus pára, esquivando-se dos corpos que se espremem no corredor ele chega até a porta. Desce com dificuldade. A chuva bate no rosto. Mas em algum lugar ainda há um abraço amigo, bolo de cenoura quentinho e folhas de papel em branco onde se paga a passagem.
E não tente o entender através dos textos, só se faz compreensível à cumplicidade no abraço efusivo e bêbado do desconhecido na hora do gol, ao afago do seu magérrimo cachorro ao chegar em casa pela manhã, ao ombro amigo que acolhe, às coxas das meretrizes dos lupanares que inventa.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Dois

Bem desconfiava que findaria na cama esta prosa. Só não contava que ante tamanha beleza destas folhas, cessasse eu de escrever. Logo comigo, o mais sincero dos mentirosos, após introduzir meu léxico ao prefácio, perdi o fio do novelo e não soube por onde enredar. E ali fiquei, tragando um cigarro enquanto contemplava os contornos de cada uma das letras que te compõem quando despida. Tão rara beleza: angelical devassidão em arte fotografada. Fadas e bruxas que ardem todas juntas quando me inquisiciona com o olhar e acende fogueira em praça pública.
E quando me faltaram os versos, me fiz jardineiro a velar teu sono, porque quando há carinho, afeto e cuidado, acaba por transceder tudo o mais que não houve. Deste modo pude comprovar que as flores são mais belas ao desabrochar da aurora, ainda que chuvosa aurora. Palavra que se fez minha, te concedo o meu verbo gostar.

Feriado


Há dias em que a gente anda tão a flor da pele, mas tão a flor da pele, que deveria ser proibido por decreto se aventurar em linguagem escrita. Não é do meu feitio, em tais ocasiões, prostrar palavra alguma no referido leito, ainda menos me arriscar pelos jardins. Tenho hábitos noturnos. Apaixonar-se não se trata de um verbo comumente empregado pela natureza sempre evasiva de poeta. Eis um risco que não pretendo correr, colocaria abaixo toda a minha obra. Porém, levando em conta a transcendência de uma quimera literária que tende por elevação de estilo a se constituir carnalmente, me intriga saber em qual página há de fiar esta canção que nos é tão pertinente. Teríamos a ousadia de transpô-la do plano mimético para a dita cuja e tão já complicada realidade?

Ponho-me a divagar nas quantas e quantas palavras se desconfiam metaforizadas no meu texto... Fazem parte do meu jogo esses subterfúgios semânticos, senão não haveria graça alguma na interpretação. Ainda assim afirmo que se permita metaforizar somente aquela para a qual as notas ecoam como pano de fundo enquanto lê-se. Se não há de escutar semmi, então não tens o direito de sentir-se empregada como substantivo concreto. Eis mais uma linha solta na tessitura, desprenda-se do enredo, largue o meu verbo e retire-se de mãos vazias e imaginação fomentada. Sinto muito, estamos fechando, volte mais cedo amanhã. Não há mais ninguém aqui para vos servir, hoje não. Agora todo o trabalho manual deve ser empregado para que se cumpra a profecia lingüística daquela que sempre esteve permeando os meus escritos, mas à que nunca foi concedida a devida atenção. Sempre ali, de andanças pelos jardins, o olhar focado nas pequenas magias que acontecem em preto & branco & cores outras. A singeleza que eu procuro em linhas e mais linhas de prosa torpe, ela acha em uma imagem só, na brevidade mágica de um instante atemporal.

Visto que nunca te concedi coroa nenhuma, nem ramos de flores como às outras, merece agora emprego mais formal da minha escrita. Eu que sempre te despojei do altar, jogando-a na cama, prometo destarte tratá-la com o devido cuidado, ó palavra intraduzível. Decretarei feriado e, em meio às outras, sublinhar-te-ei para que te sintas objeto influente na minha transcrição. Se reclamares, te corôo com aspas, o que viria bem a calhar, dado que não se trata de expressão da criação da minha língua, muito embora não me pertenças jamais fora empregada com tanto asseio por outro vate. Aqui na minha prosa poética sinta-se dádiva, musa alheia, núcleo do sujeito, termo essencial da oração, enfim, sintaxe à vontade. Em verdade vos digo: já esperou por tempo demasiado a tradução. Então tomo uma dose de conhaque pra acabar com a maldita timidez e venho reclamar-te os meus direitos autorais.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Circular Cidade


Feriado. 02 de novembro de 2011. Pouco dinheiro no bolso. Sem teto. Muitos amigos. Nenhum parente morto. Folga de última hora. Finados. Os túmulos de Quintana, Pessoa e Drummond muito longes. Nenhuma flor “roubável”. Exclusividades de Iemanjá.

Rua. Convite de alguns amigos: praia, casa, passeio. Recusa. “Cintilante do caminho. Sai do arco uma flecha. Em seu contorno fogo. Corpo que pode explodir”.

Ará é uma cidade que trata com benevolência escritores sem dinheiro. Ao menos no que se refere ao deslocamento. Com apenas Um Real, Doze Centavos e meio é possível circular em todas as partes, do desperdício na zona sul às mazelas da zona norte. As ruas do centro são as mais tristes, por trazerem lembranças felizes. Glória ao Sistema de Transporte Integrado. Amém.

Às mentes insólitas do espectador comum pode parecer programa de índio. Mas não a um observador literário. Onde todos vêem transeuntes, ele vê personagens. Acontecimentos atendem pelo codinome “Enredo”. Fatos? Podem ser duvidados. Dúvidas? Podem ser validadas.

Embarcou na zona norte. Programa agendado. Deteve-se por um momento no terminal da zona leste. Ponderou. Deixou ir em paz o ônibus. Pensa um pouco sobre a composição. Nenhum Satã para financiar charutos e vinhos. Atravessou para a outra plataforma. Centro. Lembranças boas, ruas agora taciturnas, chorando a ausência de estudantes, spleen. Um real compra dois saquinhos de amendoim adocicado que substitui café da manhã, almoço e engana a fome por mais algumas horas. Observa os mendigos. A um deles daria todo o dinheiro que tivesse, se o tivesse. Mas não deu.

Outro embarque. Durante todo o percurso ele pensa sobre a composição. Centro de consumo, passa reto. Terminal do Distrito Industrial. Bundas, coxas, peitos. Amendoim não. Toma outro ônibus. Centro de consumo, desce. Ao menos tem banheiro, água e leitura gratuitas. Ilusão. Livraria fechada, mercado fechado, banheiro como consolo. Espelho, ele amarra o cabelo e acha-se bonito, apesar da barba mal feita, apesar dos olhos vermelhos, das olheiras, das noites sem dormir, dos dias de má alimentação e boas bebedeiras. Apesares.

Parque. Gente feliz, cachorros, bolas, bicicletas, crianças, sombra, piqueniques, algazarra. Deita num banco, repousa e pensa sobre a composição.

Percurso inverso: centro de consumo, banheiro, Terminal do Distrito Industrial, centro triste, zona norte. Pega a chave da casa de um amigo, mas não se destina para o devido local. Em vez disso: Bar, doce lar, como cronicaria certo Sabino.

Pede uma cerveja e um cigarro. Senta naquela mesa ali da calçada, melhor lugar para ouvir enredos. Ignora o futebol da TV. Arreda as cadeiras dos seus acompanhantes que durante todo o dia pensaram sobre a composição. Brindam: ele, seu Macário e seu Penseroso. Escrever na 3ª pessoa consiste a forma mais exata de se esclarecer, embora não o faça com a devida qualidade estética que o faria por prosa poética, falseando a 1ª pessoa do singular.

Paga a cerveja, agradece. Ainda sobram alguns trocados pro café. Contudo é hora de deitar palavra no papel.