sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Uivo

 
Quem dera fosse a vida mero cessar de chamas. Quem dera restassem somente cinzas sobre o chão impudico do lupanar carbonizado. Quem dera resignar-me nos ternos braços d’algum amor que sê descanso, zelo, conforto. Mas a preservação não cabe a seres de minha natureza lupina, por mais gregária que deveria, arde em mim a maldição do mamífero solitário, do enjeitado, daquele que vaga mata adentro sem obter refúgio e descobre que não há abrigo mais acolhedor que estar em incessante movimento.
Tudo arde em mim mais fremente agora que tive sob a pelugem o afago de uma espécie semelhante. Bastava roçar meu focinho sanguinário nela e abrandava fome, fúria, instinto. Éramos como dois animais dóceis a rolar sob a relva ignorando a presença de caçadores. E o nosso mundo parecia a infindável vastidão das flores do prado, não havia mais que o rumorejo de um regato que tolhia o bosque e embora eu já ouvisse ao longe o canto de um rouxinol, não cogitava abandonar o resfôlego daquelas tardes calmas, afinal era-me tão raro. Presas fáceis brincavam descuidadamente sob o alcance de minhas garras e ainda que houvesse uma vontade férrea e instintiva da posse pela carne, me contentava em ser gentil, pois havia me destinado propósitos mais elevados.
Mas a noite cobriria com seu manto sacrílego e seu palor a imensidão e clareza daquelas tardes idílicas. Uma ave a qual não recordo a alcunha já prenunciava precipitadamente a escuridão e enquanto minha amada me explicava os maus agouros, me punha a pensar se não seria pela formosa mão dela que se cumpriria minha profecia, afinal sempre fora a apresentadora mordaz de meus ganidos, ainda que não soubesse disso.
Cai a lúgubre noite sobre a minha fuga e esmorecem os sonhos de menino. Queimo, corro, ardo mata adentro envolto em chamas. Não há mais relva nem prado, a floresta é tão densa quanto a minha prosa aos desencontros. Tudo é lenha e a tudo eu consumo numa agônica e debalde tentativa de sentir sozinho para que ela fique a salvo sob o frescor da brisa do riacho que dividia o bosque. Ergo sobre meu dorso em chamas todas as vigas e escombros deste amor proibido, pois ígnea é a pelugem que envolve meu sorriso e abre clareira em qualquer sombra. No fim ainda resta-me o que sempre tivera: uma noite ébria em que o meu uivo sob o luar corta o silente espaço do impossível e se reconhece no embargo repentino das suas cordas vocais.

segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ribeira

Dedicatória: de um riacho para outro.

E a penugem de minha tez cresceu mais ruiva do que nunca sob os auspícios dela. Cada afago matutino direcionava os fios em uma única linha corrente. Ei-los todos: o negrume da maioria que teorizava formas e o rubro lirismo sem comedimento, ao que se juntavam alguns fios louros tentando em vão uma harmonia, pois ainda havia aqueles que marcavam a passagem grisalha do tempo. Todos perfumados por cada retorno das manhãs em que eu era a festa do jasmineiro voltando com passos decididos à ficção da vida cotidiana, pois supunha ter no seio da realidade dilatado o nosso mundo.
E era todo à volta do meu sorriso que crescia o nosso amor inventado e já quase me cobria a boca. Reluzia no orvalho de cada manhã, se cobria de poeira sobre a tarde e uma brisa de saudade lhe soprava a cada anoitecer. E a espera noutro dia era sempre escondido em meio às plantas, feito uma delas que com o vento vergava o olhar para a esquina à procura de um abraço. E o coração imóvel feito planta. E a sensação da espera era tão verde quanto o caule mais frágil de esperança. Já quase murcho ia cheio de medo consultar o oráculo. Ao que ele disse: agora sim! E cada linha que eu lia era um passo dela em minha direção, e eu já com o coração em atropelo não era mais planta, não era mais verde, era menino cheio de cor outra vez com as mãos trêmulas segurando a linha tênue da própria armadilha. O paciente braço, ainda enrijecido pela espera, contrastava com a pressa do batimento interno. Mas era preciso esperar ainda um pouco, primeiro pela confusão dos sentidos ao saber que ali estive, depois pela vã procura dos seus olhos ao redor, e por último a constatação de cada pétala da minha loucura escrita no concreto tímido. Então eu chegava a meia voz (como ela sempre me chegou) já recitando em seu ouvido nu as cordas forjadas do nosso destino; e quando ela virou-se já não ouvia mais nada do que eu lhe dizia e me calava a boca com um beijo e me desequilibrava o corpo no abraço e toda a minha vida se balançava naquele riso dela. Foi a última vez que a tive.

Depois disso o silêncio deixou de ser nosso e eu, cansado de escrever, me fiz teu leitor. A força e a simplicidade daqueles versos inimigos ter-me-iam entristecido, mas devo confessar que achei-os lindos e sorri satisfeito de minha própria desgraça. Por mais destreza que eu tivesse no punho, não haveria soneto que apagasse aquilo, pois a verdade de um amor não se esquece com métrica ou rima. Ah, o riso dela... o riso dela era um álveo profundo e não era a minha a única vida que se afogava nele. Repentinamente me senti um riacho efêmero e o olhei como outro riacho efêmero diante das águas perenes daquele rio tão vasto, tão digno de toda afluência de amor do mundo. Quem de nós terá a ventura de chegar a alto mar, não sabemos, creio que serás tu. Se fores, desejo-lhe toda a limpidez da água mais pura para que saiba correr com ternura o leito desse rio que amamos. E se eu quedar por aqui mesmo, ainda na nascente, ó nobre companheiro de viagem, eu lhe faço uma promessa: farei destas margens as mais floridas, farei desta relva que banho a mais vistosa, pois até mesmo a minha dor será repleta da beleza do que foi vivido!