domingo, 3 de março de 2013

Monólogo


“Como não haveria de ser eu um Lobo de Estepe e um mísero eremita em meio de um mundo de cujos objetivos não compartilho, cuja alegria não me diz respeito!” *

Tenho sido feito de ausências. Eu que fui capaz de amar as putas, de profundidades e intempéries me estendia, de incautos voos me assegurava. A vida sempre teve, em mim, implicações mais densas. Como um eterno viajante, que nunca partiu, mas esteve sempre se sentindo de partida, de partida, de partida... E as viagens interiores certamente são as mais rudimentares. De Provença, um menestrel aos bordéis russos e tabernas; do anonimato fiz meu Danúbio e fui pierrô parisiense. Narrador personagem de todas as mentiras, de todas as invenções que, por si só, justificavam as demais insuficiências. Quem antes talhava a folha como um colono arando a terra com fervor, quem fora iniciado na alquimia oculta do verso e fez prosa como poucos, não há mais. Contudo, mais desesperador que a falta de escrita, é o olhar. Falta-me enredo. Ando pelas ruas e vejo as pessoas como são. Este mundo é denotativo, meu deus. Confortavelmente denotativo e os habitantes são alegres, de uma alegria superficial e verdadeira. Não há mais quem saiba forjar com destreza, não há mais inventores como nós. Ah se eu não tivesse te matado, mas matei a poesia. Só restaram os outros e talvez eles até tenham razão. Contudo, a razão não é uma coisa que se aplica a seres da nossa natureza.

“Por outro lado, o que se passa comigo nos meus raros momentos de júbilo, aquilo que para mim é felicidade e vida e êxtase e exaltação, procura-o o mundo em geral nas obras de ficção; na vida parece-lhe absurdo.”*

* Hermann Hesse, in O Lobo da Estepe