sexta-feira, 27 de abril de 2012

Crônica suja de tinta

Lápis sobre o papel: DOUGLAS, Rafael. Rede, 2011
Roubei-a da parede da galeria e tomei-a no meu colo. Desde então nem penso mais naquelas alvas mulheres de papel que eu outrora gozava. Quero somente o teu corpo tisne. Tua quase ocre textura quando de bruços, semelhante ao pôr-do-sol. Tudo em ti é pura erudição visual. E até mesmo a tua menstruação é uma arte de rubra tintura. Tua boca ruboriza a minha pena e almejo me tornar mais que escritor, mais que poeta, julgo-me um pintor.

Então fazes questão de lembrar-me que não fui eu quem te criei. Pouco me importa, vivo agora sujo de tinta também. Despertas em mim um lado que eu não conhecia antes. Torno-me agressivo, quero tomá-la com veemência, o tempo todo. Este ímpeto inefável de tentar em vão fazer-me o teu criador. E vou rasurando a tua carne com selvageria. Quanto mais tu gritas, mais tesão tenho eu. E bato-a de deixar marcas na tela. E então serás vendida como avaria. Junto dinheiro e compro-te de novo. Levo-a até a minha casa e coloco-te na parede do banheiro. E quando nu fico a observá-la, o meu corpo todo se punge. Saio pra rua e entro no primeiro bar, peço uma dose e mais outra e outra ainda... embriago-me. O rapaz que atende o balcão diz que é hora de fechar e me expulsa. Não tenho pra onde ir, não quero voltar. Acabaram os cigarros, não tenho dinheiro. Deito na calçada e durmo, como um pobre poeta maldito que sonha em ser artista plástico.

Eis que a impetuosa aurora reverbera nos meus olhos com crueldade. É hora de retornar, tenho fome, estou sujo. Preciso dum banho, comida, você. E ao adentrar a varanda encontro-te seminua na rede, as pálpebras descidas e um sorriso doce... lembrando-me um retrato que pintei em outros tempos, em outras cores. Porém desta vez tenho a permissão de ir até o fim e não há nada de onírico neste quadro. Então no embalo da rede eu vou tecendo meus versos etílicos... Só me resta condenar outro poema ao meu viver.

2 comentários:

  1. ... eis aqui os verbos sujos se transformam em água que limpa a alma ...
    LindoooOo.O

    XD
    Carla

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  2. Catarse... Sua escrita me encanta completamente

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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)