Aquarela: DEBRET, Jean Baptiste, Auto-Retrato Taberna, 1816
Ali estávamos nós, uma vez mais. Ofereci-me algo para beber, um de mim não aceitou, o outro sim. Aguardávamos o terceiro. Um de mim fumava, o outro não. Preferia contemplar com calma os frisos que tomavam uma das paredes do Bordel. Um de mim abusava semanticamente de toda palavra, o outro as tratava com distinto respeito que demonstrava superioridade.
Enfim chegou o terceiro, já era tempo. Escorou-se na porta da taberna. Era um anjo torto. Trazia uma asa arrancada, sempre do lado esquerdo. E ria do sangue ainda quente que não cessava de escorrer, lirismo cruel.
Disse com desdém o primeiro: “Senta-se nobre Poeta, e sintaxe à vontade. Sirva-se de ópio, absinto, haxixe, spleen. Sirva-se dos olhos lânguidos, de um par de coxas, dos seios volumosos das mulatas, das ruivas... e declama-nos um dos teus poemas.”
O segundo, o velho, nada dizia. Continuava em profunda contemplação dos frisos laterais.
Ao que disse o terceiro: “Outra vez arrancaram-me a asa do lado esquerdo e já não posso voar com destreza. Meu vôo é torto, difícil e tão gauche quanto o meu destino. Resta-me acolhê-lo sem pesar.”
De novo o primeiro, o teórico, formalista, maldito: “Apenas estás a colher o que plantaste com zelo. Eu te disse que não versificasse teus poemas. Acreditas em qualquer estória que inventas. Nunca fizestes sexo como eu faço. Devias abusar da prosa e divertir-se com estas meretrizes, mas tão logo compôs em versos, amastes. Foi a tua perdição.”
O lírico: “Cala-te! Maldito, não sabes o que é o amor. Nunca amastes, o que faz é superficial em demasia, estes desvios na linguagem, essa estética proposital, se põe a abusar das palavras, enganá-las com essa prosa torpe, fria e calculista. E vive nas tabernas, embriagando-se como um animal sedento. Não sabes escrever outra coisa que não um corpo de mulher. Nenhuma delas te amou, apenas usam teu corpo e tua pena por seres o melhor no que fazes. Mas tu nunca penetraste na alma de alguém, não sabes o que é um seio palpitando junto ao teu, não sabes o que é deixar-se levar pelo sono para dentro dela e acordares velejando em rios oníricos...”
O velho riu, mas não teve maldade no riso. Apenas a sabedoria de quem contempla uma ampulheta. Um riso de água doce.
O maldito: “Faz-me rir. Ao menos não é em mim que falta um pedaço agora. Teu lirismo exacerbado me dá nojo. És tão passional e ridículo, tens muito que aprenderes ainda com a poesia. Fazei o seguinte: queima estas cartas, guarda teu jardim, desfaz este jardim que vinha cultivando silenciosamente, ele de nada serve agora. Permita que a minha prosa sirva este bordel por um tempo, deste modo ninguém sofre e todos se divertem. Dá-me a tua mão, vem comigo, dividirei contigo as minhas adúlteras palavras. Desde logo te proíbo de tecê-las em versos. Apenas observa-me e fazes o mesmo. Juro-te que logo estarás curado. Agora beba.”
O velho despediu-se calorosamente e foi embora. Um ciclo se findou. Seu riso desaguou no mar.
Como disseram-me uma vez, relativo ao um poema que usufruiu da minha boa vontade para se fazer existir: "O mais puro prazer poético é o que sinto"... Simplesmente genial.
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