quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Blues II



Mia Dona, perdoe-me a ausência! Não dei por mim que tinha voltado tão brevemente. Ando recluso. Laborando meu arcaísmo para voltar um dia ao poente. O porvir é como uma frágil planta arraigada a terra, em que a raiz é mais forte que a planta em si. Tenho me dividido entre a morte de uma longa prosa e os versos vindouros aos quais já me sinto condenado. Tenho vivido as mais singelas e também as mais doídas coisas da vida. Tenho amado e sofrido sem me preservar, tenho escrito poemas sem os publicar, mais que isso: tenho feito poemas sem os escrever!
Antes desta procela, mais uma palavra que se foi. Antes que murchasse, pude extrair do gineceu uma obra inaugural: um soneto, árduo, metrificado, perfeito, o melhor que se poderia talhar nestes tempos já tão idos. Um soneto jogado no lixo, como uma flor de esgoto. Coisas de poeta ultrarromântico que sempre morre de tuberculose no final da madrugada... mas no agônico suspiro consegue ainda talhar de modo rupestre um adorno à posteridade! Talvez não tenha sido mais que uma represália ao modo deselegante e nada cortês com que se tem tratado a poesia contemporânea. Talvez no mesmo ato assim eu o tenha feito: como fosse ela uma equídea xucra e lhe bastasse ajaezar o dorso para dominar-lhe os aspectos formais. Contudo, quis somente demonstrar domínio técnico para dizer que se o aspirasse, Poeta seria, mas prefiro conservar-me na anônima tecelagem desta prosa suja. Não hei de trazer primazias que careçam do verbo sentir ao nosso Bordel. Talvez eu deixe cair aqui um ou dois versos que nem sequer alcem rima, como um terno pássaro que sai pela primeira vez do ninho e se preocupa mais em descobrir o mundo circundante que voar. Talvez três versos que tenham a ingênua pretensão de haicai, mas serão eles a mentira mais verdadeira, virão do âmago, ainda pulsando e serão correspondidos plenamente.
Mia Dona, confio na prosa que leva entre as coxas para tomar conta deste prostíbulo e satisfazer os poucos clientes que ainda nos restam. Se acaso te enamorar por algum deles, tens o meu consentimento e uma placa de "aluga-se" atrás da porta, basta pendurá-la no lado de fora junto com teu coração.
Agora dê-me licença, um beijo e um último cigarro que tenho poemas a viver. Eu que outrora os escrevera nos muros, para-brisas e enseadas, agora os farei em minha própria carne à flor da alma. E se me quedar do onírico, restará chorar um blues e fumar um charuto tendo a certeza de que não tive medo de morrer e por isso vivi. Afinal, nunca este quintaneio me foi tão apropriado: “que importa restarem cinzas/ se a chama for bela e alta”.

Um comentário:

"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)