Quem dera fosse a
vida mero cessar de chamas. Quem dera restassem somente cinzas sobre o chão
impudico do lupanar carbonizado. Quem dera resignar-me nos ternos braços
d’algum amor que sê descanso, zelo, conforto. Mas a preservação não cabe a
seres de minha natureza lupina, por mais gregária que deveria, arde em mim a
maldição do mamífero solitário, do enjeitado, daquele que vaga mata adentro sem
obter refúgio e descobre que não há abrigo mais acolhedor que estar em incessante
movimento.
Tudo arde em mim mais
fremente agora que tive sob a pelugem o afago de uma espécie semelhante. Bastava
roçar meu focinho sanguinário nela e abrandava fome, fúria, instinto. Éramos
como dois animais dóceis a rolar sob a relva ignorando a presença de caçadores.
E o nosso mundo parecia a infindável vastidão das flores do prado, não havia
mais que o rumorejo de um regato que tolhia o bosque e embora eu já ouvisse ao
longe o canto de um rouxinol, não cogitava abandonar o resfôlego daquelas
tardes calmas, afinal era-me tão raro. Presas fáceis brincavam descuidadamente
sob o alcance de minhas garras e ainda que houvesse uma vontade férrea e
instintiva da posse pela carne, me contentava em ser gentil, pois havia me
destinado propósitos mais elevados.
Mas a noite cobriria
com seu manto sacrílego e seu palor a imensidão e clareza daquelas tardes
idílicas. Uma ave a qual não recordo a alcunha já prenunciava precipitadamente
a escuridão e enquanto minha amada me explicava os maus agouros, me punha a
pensar se não seria pela formosa mão dela que se cumpriria minha profecia,
afinal sempre fora a apresentadora mordaz de meus ganidos, ainda que não
soubesse disso.
Cai a lúgubre noite
sobre a minha fuga e esmorecem os sonhos de menino. Queimo, corro, ardo mata
adentro envolto em chamas. Não há mais relva nem prado, a floresta é tão densa
quanto a minha prosa aos desencontros. Tudo é lenha e a tudo eu consumo numa
agônica e debalde tentativa de sentir sozinho para que ela fique a salvo sob o
frescor da brisa do riacho que dividia o bosque. Ergo sobre meu dorso em chamas
todas as vigas e escombros deste amor proibido, pois ígnea é a pelugem que
envolve meu sorriso e abre clareira em qualquer sombra. No fim ainda resta-me o
que sempre tivera: uma noite ébria em que o meu
uivo sob o luar corta o silente espaço do impossível e se reconhece no embargo
repentino das suas cordas vocais.
Que saudade estava da sua prosa!
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