segunda-feira, 21 de maio de 2012

Ciclovia

Pintura em tela: DOUGLAS, Rafael. Ciclovia, 2012.

De certa forma, agradeço tua falta de interesse pelas artes verbais. Se lesse o que invento de ti, me abandonaria sem pesar. Se desconfiasse da paixão que cultivo nas entranhas do meu peito ébrio. Embora seja uma paixão somente pela carne. Encantei-me pelo teu sexo, pela tua falta de pudor, nosso tango na horizontal. Exerce com destreza as mais inimagináveis posições sintáticas, multifacetada expressão, suprassumo da volúpia. E eu, todo orgulhoso da obra que roubei adulteramente, te cubro o corpo de elogios. Infidelidade conjugal consumada. Mas demasiado libertina que és, não cederia mais teus favores se soubesse dos meus sentimentos. Tu és realmente um espírito livre. A palavra que sempre procurei para escrever.

Pedalando pela rua, um frêmito desnuda a tua orelha e um raio de sol oportunista aproveita as curvas do teu brinco para se fazer refletir. O vento malicioso pede licença e te descortina o vestido expondo aos passantes tua coxa bela e escura, não mais escura que a relva pubiana rente ao que tens de mais sagrado e que eu profano todo santo dia. O vestido não dá conta de ofuscar a tua pele negra e transparece, deixando à mostra os bicos dos seios, auréolas carnudas, minhas inesgotáveis fontes de inspiração. E o trânsito se confunde, nenhum motorista lê mais os sinais, ciclistas se chocam, barcos atracando no meio da rua, pedestres fazem pouso de emergência no ar...
Musa alheia,
na contramão da ciclovia,
nos tira do sério,
instala o caos e a fantasia.
Observa tudo com teus olhos de ressaca e vai-se rindo pela tarde. Se desconfiasse qualquer lirismo advindo de minha pena... Não devo ousar deitá-la em verso. Seria minha glória como poeta, meu reconhecimento e minha eterna perdição. Prefiro permanecer no anonimato, tecelão desta prosa escusa, ao menos ainda me resta algum domínio sobre o meu ofício, não mais abnegado. E o nosso encaixe é tão perfeito, que ao narrar os nossos movimentos aos ouvintes, todos julgam ser apenas literatura.

Um comentário:

  1. Que maravilha que é percorrer a contra-mão, momento que o corpo vê e o olho toca, sem sinalização o coração pulsa o sinal do tempo que na mão da brisa se eterniza. Viva os olhos de ressaca, a risada na cara e a vida que se deita em verso reverso!!Incrivelmente rara a escrita...Inspiração!!

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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)