segunda-feira, 20 de janeiro de 2014

Ribeira

Dedicatória: de um riacho para outro.

E a penugem de minha tez cresceu mais ruiva do que nunca sob os auspícios dela. Cada afago matutino direcionava os fios em uma única linha corrente. Ei-los todos: o negrume da maioria que teorizava formas e o rubro lirismo sem comedimento, ao que se juntavam alguns fios louros tentando em vão uma harmonia, pois ainda havia aqueles que marcavam a passagem grisalha do tempo. Todos perfumados por cada retorno das manhãs em que eu era a festa do jasmineiro voltando com passos decididos à ficção da vida cotidiana, pois supunha ter no seio da realidade dilatado o nosso mundo.
E era todo à volta do meu sorriso que crescia o nosso amor inventado e já quase me cobria a boca. Reluzia no orvalho de cada manhã, se cobria de poeira sobre a tarde e uma brisa de saudade lhe soprava a cada anoitecer. E a espera noutro dia era sempre escondido em meio às plantas, feito uma delas que com o vento vergava o olhar para a esquina à procura de um abraço. E o coração imóvel feito planta. E a sensação da espera era tão verde quanto o caule mais frágil de esperança. Já quase murcho ia cheio de medo consultar o oráculo. Ao que ele disse: agora sim! E cada linha que eu lia era um passo dela em minha direção, e eu já com o coração em atropelo não era mais planta, não era mais verde, era menino cheio de cor outra vez com as mãos trêmulas segurando a linha tênue da própria armadilha. O paciente braço, ainda enrijecido pela espera, contrastava com a pressa do batimento interno. Mas era preciso esperar ainda um pouco, primeiro pela confusão dos sentidos ao saber que ali estive, depois pela vã procura dos seus olhos ao redor, e por último a constatação de cada pétala da minha loucura escrita no concreto tímido. Então eu chegava a meia voz (como ela sempre me chegou) já recitando em seu ouvido nu as cordas forjadas do nosso destino; e quando ela virou-se já não ouvia mais nada do que eu lhe dizia e me calava a boca com um beijo e me desequilibrava o corpo no abraço e toda a minha vida se balançava naquele riso dela. Foi a última vez que a tive.

Depois disso o silêncio deixou de ser nosso e eu, cansado de escrever, me fiz teu leitor. A força e a simplicidade daqueles versos inimigos ter-me-iam entristecido, mas devo confessar que achei-os lindos e sorri satisfeito de minha própria desgraça. Por mais destreza que eu tivesse no punho, não haveria soneto que apagasse aquilo, pois a verdade de um amor não se esquece com métrica ou rima. Ah, o riso dela... o riso dela era um álveo profundo e não era a minha a única vida que se afogava nele. Repentinamente me senti um riacho efêmero e o olhei como outro riacho efêmero diante das águas perenes daquele rio tão vasto, tão digno de toda afluência de amor do mundo. Quem de nós terá a ventura de chegar a alto mar, não sabemos, creio que serás tu. Se fores, desejo-lhe toda a limpidez da água mais pura para que saiba correr com ternura o leito desse rio que amamos. E se eu quedar por aqui mesmo, ainda na nascente, ó nobre companheiro de viagem, eu lhe faço uma promessa: farei destas margens as mais floridas, farei desta relva que banho a mais vistosa, pois até mesmo a minha dor será repleta da beleza do que foi vivido!

Um comentário:

"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)