sexta-feira, 26 de abril de 2013

Conto (Parte III)

Glósóli – Sigur Rós


O dia raiou e quis a moça uma fita para pôr no cabelo, da cor anil. O gatuno então perambulou pelas ruas, depois pelos prados, visitou outras aldeias, invadiu castelos e nada daquela cor encontrar. Extenuado da longa peregrinação, parou pra descansar no leito de um rio, ao que olhou pra cima. Não teve culpa, era preciso enfeitar os cachos bonitos da moça.

Após quarenta e quatro ocasos, voltou ao seu planeta trazendo aneladas aos dedos várias fitas dos mais diversos tons, exceto o anil. Na extremidade de cada uma das fitas havia um balão da cor correspondente. Dispô-los no ar para perfeito encantamento da moça. Aeróstatos lilases, esverdeados, escarlates... satisfaziam o seu alado olhar e distraíam-na enquanto o moço colocava uma fita em seu cabelo, da cor do seu pedido. Mal sabia a moça... Maravilhada com o mosaico de balões, não deu por si que o céu transparecia. Nem ao menos percebeu que o moço também não tinha cor. Como um palhaço que espalha o riso, mas tem por detrás do nariz aquele vazio existencial de que são acometidos os verdadeiros artistas.

(Fim)

quarta-feira, 24 de abril de 2013

Conto (Parte II)

Hoppípolla – Sigur Rós

Era tempo de pipa quando se reconheceram no olhar um do outro. Há alguns meses que o ofício abnegado do antigo jardineiro era colorir as tardes da moça. Plantava-lhe na face um breve sorriso que germinava alegria. E antes do pôr-do-sol ela lhe pôs um apelido engraçado: “entregador de arco-íris”, ao que ele sorriu também com rubor. Cativou-o. Passava as tardes a enfeitar a vida da moça. Forjava matizes, roubava nuances, inventava-lhe em cores várias e outras cambiantes.

Certa vez deixou o entardecer cinzento só para que ela trajasse um vestido alaranjado em noite de lua azul. Noutra despojou o mar de suas riquezas para colocar-lhe no busto um colar de conchas rosadas. E os transeuntes, coitados! Fê-los todos nublados para que no chão se formasse um espetáculo de sombras coloridas para deleite e gozo sagrado da plateia ímpar. Houve ainda aquela vez em que desnudou bosques e matas sem fim, mas valeu a pena ver o brinco esverdeado pendurado na orelha da moça e o arco-íris dobrado no céu pra vê-la com mais nitidez, irisando-lhe o rosto.

Porém não tardava o poente, dado que a moça levava o sol nas costas. Adentrava as noites a compor ensaios sobre ela. Destinava-lhe recifes, corais, canções simplórias. Havia sempre um verso caído no portão esperando a sua chegada em casa após o trabalho. E ele foi-se apaixonando pelo invento.

(...)

segunda-feira, 22 de abril de 2013

Conto (Parte I)

Glósóli – Sigur Rós

Era uma vez um ladrão. Andava sempre desocupado e sobrevivia das aspas roubadas. Dedicava-se em tempo integral às inutilidades. Não bastava ser larápio, ainda era mentiroso. Não servia lá pra outra coisa que não fosse à poesia.
Foi quando ele não tinha lá muito que fazer que inventou a moça. De tanto que não tinha, se punha a cultivar agrados literários na enseada pr’uma das amadas. Daí que a moça passou... Levava nas mãos uma máquina de parar o tempo e parou-o uma, duas... tantas vezes sem consentimento. E quando o tempo, contrariado, voltou a bater na beira, ela perguntou:
“Que são?”
“Poemas.” disse o moço.
“E pra que servem?”  quis saber.
“Fechai os olhos” – mas a moça nada viu nem ouviu, ao que embarcou numa nuvem e foi brincar de parar o tempo em outros mares.

(...)

segunda-feira, 15 de abril de 2013

Tempo de pipa

Dilata coração, dilata
Abranda o meu olhar, abranda
Acalma o meu devir, acalma
Pro vento me fazer varanda

Soprar no meu quintal, teu cheiro
Soprar no meu pulmão, as velas
Eu sonho rimas e aquarelas
Mal caibo no meu travesseiro

Eu tenho de nós dois, um mapa
Eu vou te rabiscar na estrada
Teu gesto e tua latitude

Nós vamos enfeitar de pipas
O tempo e decorar os dias
Que aumentam nossa longitude