quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

Telegrama II

À Tâmara mulher de todos os santos

Mais do que nunca preciso te deitar aqui. Tua nudez semântica é minha salvação. Tirar-te uma a uma as vestes: começar pelas tuas margens, tesão maiúsculo, a letra “a” que te finda, deixar somente o verbo no âmago, verbo mais que conjugado nos últimos tempos, verbo sacro. Desautorizar, tirar as aspas pra chupar os seios da palavra, porque palavra boa, uma vez proferida é assim: se disputa e deita com todo e qualquer que queira fazer dela um refúgio, cais ou estandarte. Necessito tua promiscuidade que me regenera. Vem pra mim, desejo capitular teu corpo, escrever dedicatórias ainda virgens.
Veja o que fizeram do nosso bordel. Tudo começou quando tirei a primeira palavra do papel e me deitei sobre ela. Levou-me a estados de espírito insondáveis, transcendeu minha literariedade, neologizou meus vocábulos. Fez-me poeta contra a vontade, eu que era somente escritor, teu escritor na verdade. Compus elegias naquela pele jardinada, colhi as flores naqueles jardins suspensos, me entreguei. Durante algum tempo foi segunda pessoa do singular de todos os meus escritos. Cheguei a pensar em largar a prosa, tamanha a versificação a que me submeteu. Mas Dionísio teve complacência de mim e soprou-me ébrio na varanda dentro da noite escura.
Foi então que proclamei mentiras com sinceridade indevida, perdendo-me nos labirintos. Ali fiquei literariamente, litoral amante que me traga, que me leve aos corsários que fazem cerco do meu coração. Mas a palavra que soprei não se entregou aos meus silogismos como fazia noutros tempos, permeando as entrelinhas. Desconfio que ela goste de ser escrita aos poucos e com zelo, ela gosta é de poesia.
Ah Tâmara, eu ando gauche, tão gauche na vida. Mais que bêbado, estou lírico, lírico, lírico... fazendo hora só pra ver ela passar de vestido. E ando sibilando até ao comprar pão pela manhã, como se fosse a coisa mais linda do mundo. Não, isso não podia acontecer comigo. Perdido assim, sem embasamento teórico, discorrendo em linguagem tão simplória. Medindo as profundezas daquele olhar de menina, talvez em vão. Haverá algures enseadas que me esperam? Sinto-me à deriva, completamente à deriva de quem diz algo com a boca e desmente com o olhar, desenganos.


Então revogo a ti Tâmara mulher de todos os santos, a cura disso tudo. Faz nas minhas veias o sulco que o arado faz na terra, espreme na minha boca o suco que encharca o pomo que te nomeia. Peço-te: faz da minha carne o teu rascunho e reabre as cortinas deste antro de perdição que criamos. Porque assim como você, assim como tu eu não tenho mais salvação.

Um comentário:

  1. Pertencer a uma escola poética é o mesmo que ser condenado à prisão perpétua.Mario Quintana

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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)