"E para que serve pensar acompanhada senão para cultivar a solidão?"
Dinamara Feldens
Mais um dia ébrio por R$ 1,12 e meio. Pode ser a Lucidez um elixir ?
Lá vai o sujeito com seu passo torto pelas ruas, cabelo desgrenhado, barba por fazer e o olhar crônico sob as coisas, como se fosse o último a saber. Acende um cigarro e o mundo sem desconfiar que está sendo pensado continua passando displicentemente ao redor.
Lá vai o sujeito com seu passo torto pelas ruas, cabelo desgrenhado, barba por fazer e o olhar crônico sob as coisas, como se fosse o último a saber. Acende um cigarro e o mundo sem desconfiar que está sendo pensado continua passando displicentemente ao redor.
Nem só de mazelas se desfaz a Zona Norte. Há que se fazer justiça e contar as pequenas alegrias que a enredam: o horizonte empoeirado que se empresta como papel de parede para um futebolzinho entre córregos, cachorros vira-latas e vendedores de picolé. Há que se contar os pés descalços na rua, o grito da mãe chamando, banho de cuia, cabelo asseado, culto na igreja e o pueril desejo contido noutro olhar igual ao seu. Há que se contar as cadeiras nas calçadas em frente às casas que se dão a longas conversas senis. Há que se contar o cálido beijo com que a dona de casa recebe o seu homem após um mais um dia de carrego na feira e a algazarra dos estudantes voltando sempre mais cedo da escola. E embora a intelectualidade literariamente forjada, também ali se encontra cada vez que acaba a tinta, o livro fecha, se abre a tarde e vai se horizontando aos poucos, dilatando os braços do sol para se deitar detrás das casas, dos barracos.
Há que se contar que na Zona Sul, além da esbanjada alegria, há solidão nos apartamentos, cigarros esquecidos no cinzeiro e flores mortas nos vasos murchos das salas tortas. E também aí se encontra, não obstante o indumentário que lhe falta.
E no centro disso tudo é onde se pede e dá-se esmolas, onde se joga e cata-se lixo, onde se trocam olhares complacentes por um breve instante, antes do sinal abrir.
Dá sinal, o ônibus pára, esquivando-se dos corpos que se espremem no corredor ele chega até a porta. Desce com dificuldade. A chuva bate no rosto. Mas em algum lugar ainda há um abraço amigo, bolo de cenoura quentinho e folhas de papel em branco onde se paga a passagem.
E não tente o entender através dos textos, só se faz compreensível à cumplicidade no abraço efusivo e bêbado do desconhecido na hora do gol, ao afago do seu magérrimo cachorro ao chegar em casa pela manhã, ao ombro amigo que acolhe, às coxas das meretrizes dos lupanares que inventa.
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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)