sexta-feira, 21 de março de 2014

Relicário

“De que adiantavam aqueles gritos, se mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os fios da atmosfera?”
Raduan Nassar.
Mude seu coração. Olhe ao seu redor. Cada pedaço do que invento compõe um relicário. Disponho-os pela cidade e além dela como fosse uma trilha de grãos sob a qual nos fosse possível reinventar um dia o nosso mundo perdido. Mundo esse que forjamos entre olhares no ventre do cotidiano. Aquelas horas ternas eram um descanso da realidade. Não, não existiram, ninguém as soube nem as mediu. Somente a mim e a ti foi concedido sentir a brisa daquele invento. Ah, como foram dilatados aqueles dias... e a gente equilibrava o riso entre dois mundos: a suposta realidade e o outro, o nosso. E quando começar a esquecer-te dele, somente pela minha pena existirá. Felizmente deixou-me algumas canções pelas quais me é possível a travessia. Ao tocarem você, tocam-na para mim, e vou juntando pelos sentidos os pedaços de um tempo cada vez mais difícil de reconstituir.
Era de poeira, rio e jasmim aquele nosso mundo. Era de pão doce partilhado pela manhã. Era de felicitações alheias enquanto as crianças brincavam em roda da gente ao romper da tarde em uma ruazinha não muito distante daqui. Era a irresponsabilidade pública do ósculo que me roubaste no canto da boca enquanto eu tentava em vão me ponderar no abraço. Era de músicas secretamente dedicadas, enquanto eu tecia céus etílicos descendo o vazio escuro da rua pra invocar teu nome como adjetivo declamado com fervor entre os ébrios desconhecidos na taberna. E mesmo quem conhecia intimamente os meus escritos supunha tratar-se de um louco desenhando horizontes na parede. Parece não ter acontecido aqui, há pouco tempo, parece sequer ter acontecido. Talvez eu seja mesmo um louco e viva de inventar enredos. Mas nunca antes inventara amor tão puro.
Amor? Não tão seguro disso, me arrisco a classificar como substantivo. Quanto ao verbo – e é tão somente do verbo que provém as estórias críveis – o tempo não nos foi propício para conjugar. Que importa? O tempo também foi subvertido no nosso mundo. Demarcávamos o tempo em pêndulos antigos que caminhavam num sentido próprio. E isso de horas, mal sabiam elas, passavam sem contar. Poucas horas de poeira cobrindo as nossas palavras poderiam significar anos de amizade, se assim nos quiséssemos íntimos. Alguns minutos de mãos dadas e cúmplices se escondendo nas últimas fileiras de um bonde tomado sem pensar, valiam mais que séculos, cabendo ao vendedor ambulante reger a cerimônia harmoniosa do nosso casamento sem papel nem aliança nem contrato nem tempo pra terminar, porque tudo entre nós assim fora firmado pelo selo impiedoso do momento. E o momento consiste em uma chama que consome de uma só vez quem não teme vivê-lo.
Fi-la água doce e límpida e em sua correnteza me deixei levar. Fi-la frondosa árvore e pus o coração nas suas raízes para ouvi-la com mais propriedade. Fi-la esparsa e bela nuvem e esperei que a chuva caísse arcaica sobre minha lavoura. Fi-la santa sob um altar erguido a lápis no meio da rua, embora a quisesse devassa e nua. Erigi a nossa casa no ar e pintei suas venezianas com meus olhos furta-cor para esperá-la na varanda cada dia com diversa nuance. Emoldurei na janela do ônibus o quadro verde do meu cabelo esvoaçante para vê-la sorrir. E aquele sorriso fez-me lírico mais que maldito e leitoras mais antigas reclamavam-me a libertinagem perdida em minha obra. E a frase era dita no ouvido dela com o assombro simultâneo de que pela minha mão era escrita: “Olhai de anil os postes que um pedaço de céu eu prego neles. Ainda que precária abóboda do fundo do conhaque. Olhai antes que beba-lhe o vento”. Fosse prosa e o vento teria bebido como gim. Mas fora sob verso que eu dispus aquela saudade e o vento passava entre uma e outra estrofe no vão intento de saciar a sede. Continha aquela precariedade característica dos sonetos de amor e fora colhido em alguns dias pelas mãos dela, já com as marcas que a exposição ao tempo lhe impunha sábia e inevitavelmente.
Mas ruiu aquele nosso mundo. Vejo-a de volta ao lar e a realidade parece uma coisa amena, de uma felicidade palpável entre os afazeres do cotidiano. A minha, não menos feliz, porém mais densa, é destilada entre o colo das amantes e os goles de cachaça, a denotação necessária para pagar as contas e a conotação inevitável que consome as minhas horas. Ainda ando pelas mesmas ruas, mas feito um lobo esguio na escuridão da meia-noite, tendo a lua como companheira. Atravessa-me a cidade e olho de poesia a lugubridade dos espaços quando silentes. Fico a imaginar que têm a cor da relva pubiana dela. A cidade é uma mulher despida quando todos dormem. Conversa de bêbado que ainda queria estar. Mas deixemos de dizer em terceira pessoa, pois só cabem duas naquele mundo que se dissolve. Sabes do que estou falando: compus de ti um estandarte. As coisas já não têm mais a função primeira que este mundo lhes designa. A polpa que bebes pela manhã já não diminui a sede, aumentando a saudade, porque tem um gosto nosso. Os postes apenas fingem iluminar as ruas, mas sua função primal é iluminar o olhar de quem repara, segurar os fios da imaginação. O barco enorme além do portal, imóvel como um senhor dos mares, se conserva apenas para ocultar aos olhos deste mundo o que foi vivido naquele. É como refazer o percurso do tempo, o primeiro dia quando desviávamos em vão um olhar do outro e eu, buscando não me perder, observava como você, depois de beber a água do coco, arrancava-lhe aos poucos a carne para saciar a fome e nisso eu já antevia aspectos selvagens da nossa natureza e que a nossa estória seria assim: a liquidez efêmera do frescor seguida do voraz arrancar de carnes como fazem as lembranças quando evocadas. Mas não quero que sejam de dor estas recordações, embora estejamos ainda doentes de amor. Sei que já não pode me dizer, então resta-me recolher os pequenos indícios da sua devoção. Te acalma, mulher, alguma hora todo mundo tem que aprender. Mas ainda vejo, ainda vejo o seu rosto em cada flor!

3 comentários:

  1. Não é mais o mesmo. Nem de longe...

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  2. Ausência

    Eu deixarei que morra em mim o desejo
    de amar os teus olhos que são doces
    Porque nada te poderei dar senão a mágoa
    de me veres eternamente exausto
    No entanto a tua presença é qualquer coisa
    como a luz e a vida

    E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
    e em minha voz a tua voz
    Não te quero ter porque
    em meu ser está tudo terminado.
    Quero só que surjas em mim
    como a fé nos desesperados

    Para que eu possa levar uma gota de orvalho
    nesta terra amaldiçoada
    Que ficou sobre a minha carne
    como uma nódoa do passado.
    Eu deixarei ... tu irás e encostarás
    a tua face em outra face

    Teus dedos enlaçarão outros dedos
    e tu desabrocharás para a madrugada
    Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
    porque eu fui o grande íntimo da noite
    Porque eu encostei a minha face
    na face da noite e ouvi a tua fala amorosa

    Porque meus dedos enlaçaram os dedos
    da névoa suspensos no espaço
    E eu trouxe até mim a misteriosa essência
    do teu abandono desordenado.
    Eu ficarei só
    como os veleiros nos portos silenciosos

    Mas eu te possuirei mais que ninguém
    porque poderei partir
    E todas as lamentações do mar,
    do vento, do céu, das aves, das estrelas
    Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
    a tua voz serenizada.
    Vinicius de moraes

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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)