quinta-feira, 5 de julho de 2012

Inverno

Invernei-me. É como se eu não existisse, entende?! O lápis e o papel continuam ali postos na mesa, virgem banquete que alimenta a ampulheta. Destas palavras foi que teci a minha vida. A cada estrofe eu me enredava no vácuo sem contar os passos. Os versos foram a busca incessante pela limpidez da alma. Eles requerem um estado de espírito propício. É preciso um coração brando e muita sensibilidade nos poros para entender meus versos. Minha prosa não, ela sempre andou ébria pelos becos e se deitava com o primeiro que lhe pusesse os olhos. Sempre foi o padecer deste corpo sem outra cura que não outro texto que estaria por vir. Nela me viciei e procurei sedento entre as suas linhas um legado deixar. Mas nem isso, infrutífera flor de esgoto, texto estéril. Era preciso descansar.

Mas a vida é prosa, meu bem. De nada adianta ir contra este aforismo. Os versos só servem para derrubar a gente no abismo. Cada estrofe é um precipício. Os emjambements são como experiências de quase morte. Poeta e leitor são suicidas que supõem precipitadamente ter a alma adejante. A poesia é um crime perfeito, alguém já me dissera, e talvez valha a sentença com maiores danos ao suposto escritor.

Por que eu sou tão lírico, meu deus?! Porque me fizeram este poema de carne e osso? Porque só piso em versos, só sei andar em cambaleios? Eu deveria me contentar e crer em ti. Mas não, cismo em me fazer teu criador e assassino involuntário. Dá-me um pouco de paz, exista pelo menos uma vez na vida.

E nu, na areia, nas primícias ainda escuras do dia, as roupas e a mochila num barco-rascunho do meu ser guardando todos os meus pertences, a água afagando os pés e os pés bramindo como se encontrassem ali a sua foz, eu te clamo, meu último poema!

3 comentários:

  1. Adorei a mudança do tema,esse ficou bem melhor que o anterior pois se encaixa perfeitamente com todo o texto,que por sinal é MA-RA-VI-LHO-SO!

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  2. O poeta é um fingidor.
    Finge tão completamente
    Que chega a fingir que é dor
    A dor que deveras sente.

    E os que lêem o que escreve,
    Na dor lida sentem bem,
    Não as duas que ele teve,
    Mas só a que eles não têm.

    E assim nas calhas de roda
    Gira, a entreter a razão,
    Esse comboio de corda
    Que se chama coração.

    Fernando Pessoa

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  3. muitooo booom!!maravilhosoo!

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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)