segunda-feira, 30 de junho de 2014

Lavradio

Entendo agora o arcaísmo da lavoura. Trata-se de uma sociedade patriarcal, em que os valores são arcaicos e bem delineados. Não há espaço para diálogo nas rupturas. Qualquer quebra paradigmática é feita em desordem – pois é a ordem uma semente que germina, um ramo que nasce e cresce afeito à terra que o sustenta; mas que arrancado dela toma novas formas.
Seu Antenor Pereira Beck e a lareira se confundem. O velho conversa com o fogo numa linguagem só deles. As chamas envolvem a lenha com a terna paciência de oitenta e quatro anos queimados com sabedoria.
No domingo, a segunda geração existente fora reunida. Nove ao todo. Metade se preservara na lida campeira, a outra migrara para províncias circunvizinhas, mas os valores permaneceram intactos. Na terceira geração os códigos sociais começavam a ser reescritos. Na tradicional roda de chimarrão, um dos netos – com um orgulho pioneiro que o fazia andar com a perna amostra no frio inverno gaúcho – exibia a primeira tatuagem da família.
As minhas marcas eram muito profundas, imperceptíveis a olho nu. Indícios de uma nova poesia, por mãos que provieram da terra, vogaram por mares distantes e agora, passadas duas décadas, reaveem a mesma terra outra vez.
A cidade se abrira em enleio e me fizera poeta, notívago das ruas e das mulheres do cais. O cerrado me envolvera em poeira e libertara da forma. Os pampas promoveram o reencontro com minha natureza túmida, rude, agrária. Entre as mãos camponesas de Seu Antenor no plantio de grãos e legumes e minhas ávidas mãos da colheita dos versos não havia tanta diferença: era tudo uma ciência da terra, era todo um cultivo de amor.


Boa Vista do Cadeado/RS, 8 junho 2014.

Um comentário:

  1. ...Família...
    Família é lugar
    onde convivem os diferentes:
    um é risonho, outro tristonho;
    um é exibido, outro inibido;
    um é calado, outro exagerado;
    um é cabeludo, outro testudo;
    um é penteado, outro descabelado...

    Família...
    Família é assim:
    nunca é possível contentar,
    pois onde há diferenças,
    haverá desavenças.
    como a todos agradar?...

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"Respeitar o trabalho do outro consiste justamente em submetê-lo à crítica mais rigorosa" (José Borges Neto)