“De que adiantavam aqueles gritos, se
mensageiros mais velozes, mais ativos, montavam melhor o vento, corrompendo os
fios da atmosfera?”
Raduan Nassar.
Mude
seu coração. Olhe ao seu redor. Cada pedaço do que invento compõe um relicário.
Disponho-os pela cidade e além dela como fosse uma trilha de grãos sob a qual
nos fosse possível reinventar um dia o nosso mundo perdido. Mundo esse que
forjamos entre olhares no ventre do cotidiano. Aquelas horas ternas eram um
descanso da realidade. Não, não existiram, ninguém as soube nem as mediu.
Somente a mim e a ti foi concedido sentir a brisa daquele invento. Ah, como
foram dilatados aqueles dias... e a gente equilibrava o riso entre dois mundos:
a suposta realidade e o outro, o nosso. E quando começar a esquecer-te dele,
somente pela minha pena existirá. Felizmente deixou-me algumas canções pelas
quais me é possível a travessia. Ao tocarem você, tocam-na para mim, e vou
juntando pelos sentidos os pedaços de um tempo cada vez mais difícil de
reconstituir.
Era
de poeira, rio e jasmim aquele nosso mundo. Era de pão doce partilhado pela
manhã. Era de felicitações alheias enquanto as crianças brincavam em roda da
gente ao romper da tarde em uma ruazinha não muito distante daqui. Era a
irresponsabilidade pública do ósculo que me roubaste no canto da boca enquanto
eu tentava em vão me ponderar no abraço. Era de músicas secretamente dedicadas,
enquanto eu tecia céus etílicos descendo o vazio escuro da rua pra invocar teu
nome como adjetivo declamado com fervor entre os ébrios desconhecidos na
taberna. E mesmo quem conhecia intimamente os meus escritos supunha tratar-se
de um louco desenhando horizontes na parede. Parece não ter acontecido aqui, há
pouco tempo, parece sequer ter acontecido. Talvez eu seja mesmo um louco e viva
de inventar enredos. Mas nunca antes inventara amor tão puro.
Amor?
Não tão seguro disso, me arrisco a classificar como substantivo. Quanto ao
verbo – e é tão somente do verbo que provém as estórias críveis – o tempo não
nos foi propício para conjugar. Que importa? O tempo também foi subvertido no
nosso mundo. Demarcávamos o tempo em pêndulos antigos que caminhavam num sentido
próprio. E isso de horas, mal sabiam elas, passavam sem contar. Poucas horas de
poeira cobrindo as nossas palavras poderiam significar anos de amizade, se
assim nos quiséssemos íntimos. Alguns minutos de mãos dadas e cúmplices se
escondendo nas últimas fileiras de um bonde tomado sem pensar, valiam mais que
séculos, cabendo ao vendedor ambulante reger a cerimônia harmoniosa do nosso
casamento sem papel nem aliança nem contrato nem tempo pra terminar, porque
tudo entre nós assim fora firmado pelo selo impiedoso do momento. E o momento
consiste em uma chama que consome de uma só vez quem não teme vivê-lo.
Fi-la
água doce e límpida e em sua correnteza me deixei levar. Fi-la frondosa árvore
e pus o coração nas suas raízes para ouvi-la com mais propriedade. Fi-la
esparsa e bela nuvem e esperei que a chuva caísse arcaica sobre minha lavoura. Fi-la
santa sob um altar erguido a lápis no meio da rua, embora a quisesse devassa e
nua. Erigi a nossa casa no ar e pintei suas venezianas com meus olhos furta-cor
para esperá-la na varanda cada dia com diversa nuance. Emoldurei na janela do
ônibus o quadro verde do meu cabelo esvoaçante para vê-la sorrir. E aquele
sorriso fez-me lírico mais que maldito e leitoras mais antigas reclamavam-me a
libertinagem perdida em minha obra. E a frase era dita no ouvido dela com o
assombro simultâneo de que pela minha mão era escrita: “Olhai de anil os postes
que um pedaço de céu eu prego neles. Ainda que precária abóboda do fundo do
conhaque. Olhai antes que beba-lhe o vento”. Fosse prosa e o vento teria bebido
como gim. Mas fora sob verso que eu dispus aquela saudade e o vento passava
entre uma e outra estrofe no vão intento de saciar a sede. Continha aquela
precariedade característica dos sonetos de amor e fora colhido em alguns dias
pelas mãos dela, já com as marcas que a exposição ao tempo lhe impunha sábia e
inevitavelmente.
Mas
ruiu aquele nosso mundo. Vejo-a de volta ao lar e a realidade parece uma coisa
amena, de uma felicidade palpável entre os afazeres do cotidiano. A minha, não
menos feliz, porém mais densa, é destilada entre o colo das amantes e os goles
de cachaça, a denotação necessária para pagar as contas e a conotação
inevitável que consome as minhas horas. Ainda ando pelas mesmas ruas, mas feito
um lobo esguio na escuridão da meia-noite, tendo a lua como companheira.
Atravessa-me a cidade e olho de poesia a lugubridade dos espaços quando
silentes. Fico a imaginar que têm a cor da relva pubiana dela. A cidade é uma
mulher despida quando todos dormem. Conversa de bêbado que ainda queria estar.
Mas deixemos de dizer em terceira pessoa, pois só cabem duas naquele mundo que
se dissolve. Sabes do que estou falando: compus de ti um estandarte. As coisas
já não têm mais a função primeira que este mundo lhes designa. A polpa que
bebes pela manhã já não diminui a sede, aumentando a saudade, porque tem um
gosto nosso. Os postes apenas fingem iluminar as ruas, mas sua função primal é iluminar
o olhar de quem repara, segurar os fios da imaginação. O barco enorme além do
portal, imóvel como um senhor dos mares, se conserva apenas para ocultar aos
olhos deste mundo o que foi vivido naquele. É como refazer o percurso do tempo,
o primeiro dia quando desviávamos em vão um olhar do outro e eu, buscando não
me perder, observava como você, depois de beber a água do coco, arrancava-lhe
aos poucos a carne para saciar a fome e nisso eu já antevia aspectos selvagens
da nossa natureza e que a nossa estória seria assim: a liquidez efêmera do
frescor seguida do voraz arrancar de carnes como fazem as lembranças quando
evocadas. Mas não quero que sejam de dor estas recordações, embora estejamos ainda
doentes de amor. Sei que já não pode me dizer, então resta-me recolher os
pequenos indícios da sua devoção. Te acalma, mulher, alguma hora todo mundo tem
que aprender. Mas ainda vejo, ainda vejo o seu rosto em cada flor!
Não é mais o mesmo. Nem de longe...
ResponderExcluirE ainda bem que não era, embora torne a ser dez anos depois...
ExcluirBravo
ResponderExcluirAusência
ResponderExcluirEu deixarei que morra em mim o desejo
de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa
de me veres eternamente exausto
No entanto a tua presença é qualquer coisa
como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto
e em minha voz a tua voz
Não te quero ter porque
em meu ser está tudo terminado.
Quero só que surjas em mim
como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho
nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne
como uma nódoa do passado.
Eu deixarei ... tu irás e encostarás
a tua face em outra face
Teus dedos enlaçarão outros dedos
e tu desabrocharás para a madrugada
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu,
porque eu fui o grande íntimo da noite
Porque eu encostei a minha face
na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
Porque meus dedos enlaçaram os dedos
da névoa suspensos no espaço
E eu trouxe até mim a misteriosa essência
do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só
como os veleiros nos portos silenciosos
Mas eu te possuirei mais que ninguém
porque poderei partir
E todas as lamentações do mar,
do vento, do céu, das aves, das estrelas
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente,
a tua voz serenizada.
Vinicius de moraes