Azul. Era a cor do seu vestido. A olhei de
tango, com meu olho ainda cinza do meu dia. Desde que passei a viver entre as
tintas do ateliê que olho as mulheres de cores, cada uma tem a sua, mas não as
conto. Penso na minha morte como um quadro abstrato feito do borro de cada uma
delas. Mas voltemos ao cinza do meu dia. Era um cinza antigo e digno – desta
dignidade que resta nas feições de quem sobrevive às tempestades –, era mais
uma vez um cinza, mais uma palavra que se fora e desta vez impublicáveis eram
as vivências do momento, como fosse um amor póstumo, que só se pudesse escrever
após o término. Amor é modo de dizer, mau hábito. Talvez tenha sido mais que
isso. Há brevidades que transcendem. Contudo, entre uma brevidade e outra o
amor verdadeiro segue pendurado na parede e já me sinto fiel a este adultério.
Enfim, o dia era cinza e eu pairava na gare
de mesmo tom cinzento. Foi quando notei a primeira mancha de azul. Nunca fui de
olhar para estas mulheres esculturais, sempre me pareceram demasiado vazias.
Mas essa mancha azul a eivar o cinza módico do meu dia era uma nota dissonante.
Era uma nota de tango, perdida como quem se fizesse ouvida somente por loucos e
poetas. Sei bem que já disse algo assim há três anos, trata-se de uma escolha consciente, como quem quisesse
recuperar uma forma arcaica de escrever – maldita seja a primeira palavra que tirei
do papel, nunca mais fui o mesmo.
Mas era dissonante aquela nota, algo fugidio entre
um piano oculto e um acordeom distante, rompia o cinza matutino com distinção e
mistério. Bem sabem os – cada vez mais raros – leitores que me restam que
andava blues por causa de outra mulher. Certa vez, Son House afirmou que um
bluesman não é aquele que domina o instrumento com maestria, e sim aquele que
se apaixona; é preciso sentir o blues. Ela me fez um bluesman. Embora não
dominasse instrumento algum, eu chorei o blues. Perdi cafetina, amante, a
languidez da escrita. Creio ser a última a mais difícil de reconquistar. Tempos
difíceis te dão o blues e é de algodão o oeste que se estende ao meu lado
esquerdo – não se trata de nenhuma metáfora. Era preciso mudar o tom antes da
partida.
Bem, voltemos ao tango enquanto se pode
ouvi-lo. Tomamos o mesmo bonde. Não havia me visto. Andou de azul até as
últimas fileiras e sentou-se ao corredor, mas, ao ver-me, imediatamente tomou o
lugar na janela, deixando livre o assento ao seu lado. Que se pode fazer em
dois segundos? Oscilar. E terá sido tamanha a indefinição no meu passo que
todos os presentes perceberiam, se houvesse todos. E como me fizeram falta os
demais, pois seriam eles o pretexto para tomar lugar ao seu lado. Não o fiz,
julgando indiscrição, e sentei-me na última fileira. Então descobri que a
indiscrição é preferível à covardia, pois essa nos define o arrependimento.
Poderia levantar-me e sentar-se ao seu lado, mas aí a indiscrição seria tanto
maior e maior era a minha covardia, talvez porque eu estivesse cinza. Mas ela
ali, olhando a chuva na janela, mexendo vez por outra nos cabelos, ia me
tornando aos poucos da cor do seu vestido.
O único privilégio do lugar que escolhi foi
que pude a olhar de tango durante toda a viagem. Alguém mais indiscreto do que
eu tomou o lugar ao seu lado. Senti um misto de ódio e pena do desgraçado que
tomou meu lugar no mundo e olhava o corpo dela como se não houvesse por baixo
do azul mais que alvas coxas, nádegas rosadas e seios fartos, como se não
houvesse ali uma nota de tango e outra de mistério. Eis que ela – mais indiscreta
e corajosa do que eu – volta o olhar para trás. Nesse momento abandonei a
odiosa discrição e segurei firme o meu olhar cinza no dela, como se
perscrutasse a sua alma de tango, e nisso eu já me fazia anil. Busquei na
mochila um rasgo de papel qualquer que fosse e uma caneta bic, e me senti
horrível ao perceber que sem estes dois elementos eu não existo. Mais uma vez
me fizeram falta os outros passageiros a quem pudesse tomar emprestada a
matéria em que comporia o meu destino. Se ao menos houvesse uma flor na
mochila, mas quem andaria com uma? Eu, noutros tempos, andava com flores e
conchas como se um dia fosse me apaixonar num bonde qualquer.
Desconheço, caro
leitor, o nome daquela mulher azul. Por minha vontade ela se chamaria Maria,
para rimar com o vestido – penso que eu nunca a despiria daquele vestido – e
com fim de verso cantado. Desconheço, do mesmo modo, sua procedência. Nem vou
contar de quando desceu do bonde, pois me envergonha o meu gris comedimento
quando desprovido da pena. Tudo o que sei dizer sobre ela é que ouvi uma nota
de tango naquele existir. Ainda a procuro nas gares, desta vez com caneta e
papel ao alcance da mão. Coragem? Veremos. Mas devo confessar-vos: aquela
mulher sem nome tornou azuis os meus dias.