Carlos Drummond de Andrade

O que faço são desvios organizados na linguagem, no corpo da linguagem. Licença poética me foi concedida para burlar a gramática. Sou eu aquele traço em fuga da linearidade dos reles textos quotidianos. Meus dias e noites são tecidos de um olhar sempre enviesado, prisma de quem anda a enredar os fatos. E me vou singrando por águas ainda virgens...
Há algumas coisas que não dispenso ao meu viver. Café, cigarros e a chuva batucando no telhado. É preciso criar jardins, engendrar nos canteiros matizes doutros tempos... É preciso ter amigos boêmios aos quais se brinda as singularidades. É preciso abraçá-los. Mas também andar sozinho pela madrugada. Passear com o guarda-chuva, atravessar ao outro lado da rua para colher uma flor, agachar-se e desistir. Eu deveria usar mais a palavra “relva”. Deter o olhar num riso de criança. Vezenquando se ancorar nas enseadas a ler os barcos que retornam quando o sol se vai.
Sou destas palavras o poeta. Sou quem as escreve com ternura. Quem as conjuga com lirismo e as despe com ardor. Mas tão logo as componho as deixo escoar por entre os dedos. Eis a minha sina, veleidades. Ser delas um momento sublime, ser somente uma lembrança, a mais doce lembrança. Aquela lembrança que assoma nos dias entediantes de suas vidas sem semântica, a nostalgia de um instante de poesia que não soube permanecer. Um sopro de magia que se desfez por entre as flores. E a estória que eu inventei se dissipa pelos mares na boca dos pescadores...
E se a gente contá-la pelas ruas, ninguém vai acreditar, virou lenda.