À Tâmara mulher de todos os santos.

Aquela que primeiro me permitiu introduzir o texto em prosa. Minto, não foste a pioneira, mas a que mais me deste prazer no referido gênero. Abriu as páginas para mim e abrigou meus versos, furtando as intersecções entre eles e tornando o meu texto corrido, não me dava fôlego. Mostrou-me que era possível escrever d’outras formas sem, no entanto, abdicar da poesia. Não, não me esqueci de quem sempre me leu com olhos vorazes. É que a vida anda uma epopéia, um misto de tragédias gregas, cantigas trovadorescas e contos beckovskianos. Tentei de todo modo descansar nas crônicas do Braga, aquele velho plagiador que me antecedeu em 60 anos e publicou algumas colunas da minha vida num jornal, com mais qualidade estética do que este humilde escriba que vos fala. As coisas mais simples e valiosas ele publicou, aquelas andanças no centro da cidade olhando as coisas invisíveis, o movimento dos pombos, a singular beleza das moças que vêm e vão dentro dos ônibus que passam enquanto eu fico aqui dentro do lado de fora rememorando frutas e cores da infância. O Braga me roubou tudo isso. E nem posso reclamar, eu que tanto já surrupiei o Arnaldo, o Manoel, o Mario, o Chico, o Carlos... o Braga tem cem anos de perdão. Nada me resta senão continuar tecendo essa prosa marginal e procrastinar um tanto mais a minha liberdade.
Por vezes me encho de tudo isso, esse repetido timbre de escrita, sempre em prosa, sempre luxuriosa, sempre metalinguística. Mas é disso que pago o meu aluguel. Caso ainda não te contaram, eu ando sem teto agora, de paragem aqui e acolá, levando as letras na mochila e pagando estadia com poesia. Juro que eu queria abandonar mais este personagem, do mesmo modo que larguei mão daqueles, e ir-me aventurar em outros gêneros. É árdua essa profissão de cafetão, quem dera eu fosse poeta. E ainda que assim me chamem, com P maiúsculo, ao pé d’ouvido e em voz gemida, finjo acreditar só pra satisfazer quem lê por mais um tempo. Mas tenho consciência que nada sou além de um mal pago cafetão de palavras. E elas me cobram. Não me dão descanso, me dão tudo, menos descanso. Estão sempre à espreita, na rua, no bar, no quarto, no mar, na sala de aula, no ponto de ônibus, estão sempre ali mexendo no cabelo, fingindo não me notar, tomando sorvete ou fumando cigarros, marcando presença de modo a exigir o emprego na minha escrita. E eu que nunca usei esse bordel em benefício próprio tenho que repassar todas as oferendas às concubinas.
Bem sabes o quão egoísta eu sou, que as uso como pretexto estético para satisfazer minhas vontades, mas que no fundo escrevo para mim mesmo. E se até aqui usei a tua missiva para vangloriar-me dos próprios defeitos, é porque revogo a ti, Tâmara mulher de todos os santos, a culpa disso tudo! Se agora vivo assim como num livro, folheando páginas, traduzindo moças do italiano ao húngaro, a culpa é tua. Porque assim como você, assim como tu eu não tenho mais salvação.
Ah, você me paga!