
Não havia em ti nenhuma poesia. Não passavas de uma mulher comum entre tantas. Tudo o que te brotas foi meu olhar quem conferiu. Sob minha pena desprendi de ti os versos, a prosa doce. Fui eu quem te debruçou no parapeito da janela, colocou-te a flor nos cabelos e soprou teu vestido. Não passavas de uma mulher vulgarmente comum. Como estas coisas despojadas de amor-próprio até que o olhar do cronista lhes confere algum valor, assim eras tu. E os homens que te levam para o leito tentam em vão divisar nas nuances as assonâncias que te dei. A tua métrica foi trabalho do meu pulso, em versos decassílabos fiz abrir tuas vogais fechadas. Tu nunca foste além de tudo isso: pretexto para a minha poesia vil, platonismo deste poeta errante, amor não vivido, preterido em favor da escrita. Porque se tivéssemos consumado o que só eu idealizei, não haveria chuva, nem poema, nem giz na calçada. Tudo não passaria de realidade fria igual a esta em que se transformou a tua e a minha vida. Mas que diabos, vens tu agora e reclamas que te despojei do altar, fazendo-me largar o jornal, perder a paciência e abrir de novo as portas deste bordel, sem dinheiro pra pagar as contas. Tantas moças que me pagariam em liras e eu aqui perdendo o meu tempo, dinheiro e artesanato contigo. Tantos corpos clamando por dois quartetos e dois tercetos, formas fixas ou versos livres que sejam, e eu aqui, cigarro na boca em frente à tela do computador tecendo em prosa enquanto o meu café esfria ao alcance da mão. Deve haver alguma explicação satisfatória para este meu ofício abnegado de dedicar-te flores, trovas e fenômenos da natureza. Com sua licença, vou assistir ao movimento dos pombos na praça de eventos do mercado central. Pra que horas é o acaso?