quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

Ofício II

“Que faz um autor com as pessoas vulgares, absolutamente vulgares? Como colocá-las interessantes? É impossível deixá-las sempre fora da ficção, pois as pessoas vulgares são, em todos os momentos, a chave e o ponto essencial na corrente de assuntos humanos; se as suprimimos, perdemos toda a probabilidade de verdade.”
Dostoievski, O Idiota, IV, 1.


Andei a pensar no senhor leitor. 
Primeiramente é preciso esclarecer que sou destes sujeitos ridículos que não existem mais: ando com flores na lapela, sob a luz dos lampiões, e detenho-me nas gares para tomar o último bonde que a esta hora lúrida já não passa mais. Deste modo senil vejo o mundo. E não mais publico os poemas por inteiro... 
(...)

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Ofício

“Ah, deixar de escrever! Nem me­reço tanto! Por isso continuarei. Como gane eternamente para a Lua dos doidos o cão amaldiçoado em alguma história (seguramente) infantil.”
De repente – Paulo Mendes Campos, 19 de dezembro de 1964.

E foi com a luz amarela da cidade incidindo sobre as coxas dela que me dei conta da plenitude que era o meu viver atual. A chuva afagava vagamente a vidraça do bonde, compondo o cenário letárgico ao qual as distâncias haviam me imposto. Talvez uma trégua, sem o meu consentimento, é fato. Mas um descanso na completude da amizade, um afago no porvir do que era amor, uma saudade há muito anunciada e o despojar da vida com brandura, deixando sobre a mesa o copo vazio, na parede o poema inteiro e na cadeira a certeza esvaída de já ter vivido tudo o que se tinha para ali viver.
Ao descermos do bonde, eu, ainda em quietude, não saberia explicar àquela mulher que eu gozava por inteiro. Como dizer a ela que teria de me dividir entre tantas... Como lhe jurar meu corpo se uma parte dele fora amaldiçoada pela universalidade de um ato, ofício voluntário para com o mundo, tarefa inglória. Resoluto, beijei-lhe ternamente a face, feito o mar que aguarda calmo as tempestades.
E a outra, que até então sempre fora a principal, a despeito de quantas eu deitava no catre, doravante rainha despojada de seu trono, olhava-nos a um canto, levando no ventre o polido sêmen da vingança. Eram meus aqueles versos trabalhados com esmero na madeira firme das horas tardias. Era minha a erudição vocabular insubordinada à nobreza tão quanto à mesquinhez do que se moldava falso ao gosto popular. A Literatura, senhores, é uma nobre vagabunda que não se deita com qualquer um. E a minha escolha pela vida, senhores, configurou o feliz abandono. A Literatura é uma séria meretriz.
Que me restou? O intento da poesia. Sim, o intento. Pois a poesia só lá conseguem os velhos e as crianças. A poesia é um bosque no qual só adentram aqueles que a desconhecem por completo ou que, depois de muito tentar, dela desistiram. O poema, este é plausível no papel. Seja o traçado firme das formas eruditas ou a mera intenção vã e vulgar, é sempre um poema. Não mais que isso, até segunda ordem.
Pois bem, metade do que me restou é o intento. Porém, meu intento sempre foi indócil, voraz e maldito. Que faço eu para cantar um amor crível? Como delinear nas estrofes de um tempo feliz a morbidez antiga dos meus versos? Fico a contemplar na nudez de suas curvas um indício qualquer da minha redenção. E entre espasmos e assonâncias, suor e aliteração, gemidos e declames, eu procuro o orgasmo literário que faça jus à realidade, mas com brandura.
E tu, leitor despudorado que ainda adentra este bordel devasso, és a outra metade. Que vens fazer aqui, maldito?! Por que insistes nesta cumplicidade nossa? Por que não te desistes de mim? Não propago nas mídias, não ponho anúncio no jornal nem nos postes, não te convido pelas ruas... e mesmo assim insistes na fidelidade indômita. Soubesse eu quem eras tu, companheiro, te dava um beijo. Ou te pagava uma dose, vai saber! Um brinde ao teu, ao nosso célebre anonimato!


Aracaju outra vez, 16 de dezembro de 2014.